Sob o sol de Veneza, a obra ao negro de João Louro

Há imagens a mais no mundo, por isso ele começou a apagá-las. João Louro representa Portugal na Bienal de Veneza.

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I Will Be Your Mirror é a exposição que João Louro apresenta na Bienal de Veneza João Miranda
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João Louro no seu atelier em Campo de Ourique, Lisboa Miguel Manso
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I Will Be Your Mirror é a exposição que João Louro apresenta na Bienal de Veneza João Miranda

Lou Reed escreveu I’ll be your mirror em 1967. Não é uma canção sobre o prazer de ser chicoteado ou sobre prostituição masculina, como outras de Reed. Nem é uma cápsula de pura electricidade, daquelas que alegadamente fizeram dos Velvet Underground a raiz de muito do rock americano moderno. Cantada na voz côncava de Nico, é uma balada simples e delicada, feita para ser tocada em jukeboxes por adolescentes nos diners americanos. É uma canção de amor, menos alegórica do que explícita. Os primeiros três versos são: “Reflecte o que és, caso não saibas/ Eu serei o vento, a chuva e o pôr-do-sol/ A luz na tua porta para mostrar que estás em casa.”

I Will Be Your Mirror é também o título da exposição de João Louro, o artista escolhido pela Secretaria de Estado da Cultura (SEC) e pela Direcção-Geral das Artes (DGA) para representar Portugal na 56ª edição da Bienal de Veneza, que abriu este sábado e se estende até 22 de Novembro.

O artista reproduziu a letra da canção dos Velvet Underground numa das peças da exposição: 19 lâmpadas fluorescentes revestidas a negro, cada uma delas contendo um verso. Os fios pretos e emaranhados que saem dos dois lados das lâmpadas parecem um contraponto à métrica organizada do poema. Apesar de se encontrar na primeira sala, a intenção do artista é que essa peça só se veja no final – não só porque a atenção do espectador é direccionada para outra obra, de maiores proporções e com uma disposição mais central naquele espaço, mas também porque, para sair da exposição, é preciso voltar para trás.

I Will Be Your Mirror é uma proposta, menos alegórica do que explícita (como a canção dos Velvet), dirigida ao espectador: a obra de João Louro será o seu espelho. Esse é um desejo que há muito tempo acompanha o discurso e o trabalho de João Louro, 51 anos: contrariar o paradigma romântico do artista solitário e demiúrgico convocando a participação do espectador. “O espectador terminará sempre a obra. A obra, até chegar ao espectador, está incompleta”, diz o artista no seu atelier, um bunker de 500 metros quadrados no subsolo de uma rua de Campo de Ourique, bairro lisboeta.

Louro iria partir para Veneza daí a três dias, na última segunda-feira de Abril. As 14 obras da exposição tinham ido antes, mas no atelier do artista subsistia uma extensa documentação descritiva e visual – plantas, fotografias, uma maqueta.

Há dez anos, João Louro foi um dos convidados para a mostra colectiva que María de Corral, a co-directora artística dessa edição da Bienal de Veneza, comissariou. Corral, que foi directora do Museu Reina Sofia, em Madrid, no início dos anos 90, é também a curadora de I Will Be Your Mirror. É a primeira vez que o artista, que surgiu na década de 1990, representa oficialmente Portugal em Veneza. Que essa escolha tenha sido decidida “pelo Estado” não o perturba. “Acho que não há nenhum artista em Portugal que, se for sincero, não queira participar na Bienal de Veneza como representante. É uma questão de desígnio. É como jogar na selecção nacional”, diz.

O foco da participação portuguesa na Bienal de Veneza deste ano tem sido o processo de selecção de João Louro. Ao contrário do que tinha sido tradição até há pouco tempo, em que o Estado nomeava um curador/comissário que, por sua vez, escolhia um artista, João Louro apresentou-se espontaneamente como candidato a representante na Bienal de Veneza.

“Eu estou num momento de maturidade para ser candidato. Como não há regras – se calhar, um dia vai haver –, peguei no meu portfolio e fui deixá-lo na Secretaria de Estado da Cultura”, explica o artista. “Depois vim a saber que outras pessoas também fizeram o mesmo. Num determinado momento, fez-se uma pré-selecção – não sei quantos lá estavam, se eram 10 ou 20 –, e houve seis ou sete em cima da mesa, entre as quais a minha. Numa fase posterior, ligam-me a dizer que a minha candidatura tinha sido aceite.”

Louro diz que ser um artista português em Veneza exige “um esforço suplementar”. “Temos sempre de lutar contra a nossa periferia. Não temos apenas que ser bons; temos que ser muito bons”, sublinha.

A sua exposição ocupa seis salas de um palácio renascentista, o Palazzo Loredan, em Campo Santo Stefano, que na edição anterior da Bienal acolheu a representação ucraniana. As salas são revestidas por estantes de livros de uma biblioteca oitocentista e têm candelabros barrocos em vidro de Murano. As peças que abrem e fecham a exposição são as únicas que não foram feitas especificamente para Veneza. A primeira é uma fotografia datada de 2005, intitulada Waiting for someone e tirada na área de chegadas do aeroporto de Miami. Um grupo de homens e mulheres vestidos formalmente empunham cartazes com o nome de passageiros. Atrás deles, João Louro segura um cartaz, também ele com um nome: Mr. Walter Benjamin.

Quando o nigeriano Okwui Enzewor apresentou o tema da Bienal de Veneza deste ano, que comissaria, e referiu o filósofo alemão Walter Benjamin, Louro lembrou-se dessa fotografia, “um trabalho antigo, mas que ninguém viu”. A primeira imagem que o espectador vê quando entra na exposição é, portanto, a do próprio artista a recebê-lo. A última que vê é a frase “The End” escrita a branco no centro de uma grande superfície negra, obra minimal de 2008.

As restantes obras de I Will Be Your Mirror – cujo subtítulo é Poems and Problems – são criações novas que dão continuidade a linhas de trabalho e séries temáticas já exploradas por João Louro. Nomeadamente, as Blind Images, telas negras acompanhadas de uma legenda descritiva ou evocativa; os Dead Ends, painéis de autoestrada com referências literárias ou eruditas; e as Covers, pinturas de capas de livros.

“O Mondrian fez sempre a mesma obra. O Rothko fez sempre a mesma obra. Há autores que não se importam de fazer sempre a mesma obra e levam isso à exaustão”, diz Louro. “Eu faço revisitações. Sou demasiado impaciente para poder fixar-me nalguma coisa. Mas se houver motivos suficientemente fortes para retornar aos temas, não vejo por que não.”

Louro diz que a sua proposta é o contrário “daquilo que seria suposto”. Em vez de fazer tudo para se evidenciar no “evento de arte mais importante do mundo”, a sua exposição prefere a rasura, o apagamento. Percorrer as salas do Palazzo Loredan é atravessar uma obra ao negro, essencialmente.

“Num momento actual, que é de hiper-realidade, em que há uma sobrecarga de imagens, de informação, quis fazer o oposto: falar sobre o invisível”, explica.

Quando Louro criou a sua primeira Blind Image, em 2001, já tinha concluído que havia imagens a mais no mundo. Em Veneza, ele vai apresentar as Blind Images números 199, 200 e 201. As blind images são imagens invisíveis que remetem para imagens existentes, recolhidas na imprensa ou na Internet, e das quais subsiste apenas a legenda. “Como o cérebro tem pânico do vazio, quando se concede uma legenda o cérebro vai rapidamente procurar uma imagem para colocar lá”, diz João Louro.

Há cinco anos, a imprensa francesa noticiou a descoberta de uma fotografia de 1880 que é o único retrato de Rimbaud na idade adulta. João Louro converteu essa imagem – uma fotografia de grupo, em que o poeta aparece sentado no exterior de um hotel em Aden (actual Iémen), com outros cinco homens e uma mulher – e uma ampliação do rosto de Rimbaud feita a partir dessa imagem – em duas blind images. Numa outra sala da exposição, faz sensivelmente o mesmo com outra referência literária, Maurice Blanchot.

Tanto Rimbaud quanto Blanchot foram escritores que, a dado momento das suas vidas, decidiram desaparecer da cena pública, agindo como se já estivessem mortos. Blanchot viveu longamente, até aos 95 anos, mas sempre em lugares isolados. Não se deixou fotografar, nunca apareceu na televisão ou na rádio, nem falou publicamente. Louro não conseguiu encontrar mais do que dez fotografias de Blanchot. A peça que criou a partir delas contém apenas as legendas, dispostas num rolo preto de 12 metros de comprimento que desce de uma mezzanine e vem bater no chão, estendendo-se pela sala fora, “quase como uma rampa de skate”.

Essa combinação improvável – Blanchot e skate, erudição e cultura popular – é um bom portal de entrada na obra de João Louro. Ele resume: “Aqui não há high culture e low culture”. As maiores peças da exposição são dois painéis metálicos, semelhantes às placas de sinalização presentes nas autoestradas, mas com referências à última ópera de Tchaikovsky, Iolanta, sobre uma princesa cega (a invisibilidade, mais uma vez).

Por um lado, Louro apropria-se de elementos banais, facilmente reconhecíveis. “Toda a gente andou de automóvel. Toda a gente esteve numa autoestrada. Toda a gente viu sinalética urbana. Não é preciso arranjar nenhum discurso muito especial para explicar isso. Automaticamente, isso entra. Esse reconhecimento imediato faz com que o espectador mergulhe com mais facilidade na obra. Depois há ali um twist, uma coisa estranha: Tchaikovsky. Mas a partir daí já o espectador está dentro da obra.”

As Covers – quatro pinturas representando capas de livros de Samuel Beckett, Dylan Thomas, Herman Melville e Gustave Flaubert – seguem o mesmo princípio da invisibilidade. “Têm a ver com a impossibilidade de se ler o conteúdo. Só se tem a capa, tal como nas Blind Images só se tem a legenda e não se consegue chegar à fotografia. Por um lado dou, por outro lado tiro”, explica João Louro.

O que é que ele espera de Veneza, em termos pessoais e profissionais?

“Este é o maior evento de arte do mundo. Não há nada comparável. Qualquer pessoa que esteja debaixo do sol de Veneza vai tirar partido disso.” Fim de citação.

 

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