Sob o signo da animalidade

As fotografias de João Tabarra expostas no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra (Biotope: assim se chama esta exposição que inaugura hoje) são o produto de uma elaboração artística e teórico-reflexiva que dá a ver e a pensar acerca de uma questão que ganhou uma importância enorme, indeclinável, e foi tratada no nosso tempo por alguns filósofos. Por exemplo, Elisabeth de Fontenay, autora de uma obra de referência, intitulada Le silence des bêtes. La philosophie à l’épreuve de l’animalité (1998), que estará presente de várias maneiras na exposição de João Tabarra: intervém nas conferências que têm lugar na abertura da exposição, lê excertos desse seu livro num vídeo que é uma das peças expostas, publica um texto e é entrevistada por Stéphane Bou para o livro que nasceu da exposição mas não é um catálogo. Como é óbvio, as fotografias de João Tabarra não aspiram a ser uma demonstração teórico-imagética, mas a fazer-nos pressentir algo da ordem da humanimalidade (para utilizar um neologismo que não me pertence) e entrever a fractura homem/animal que, na nossa cultura, foi também sempre o resultado de uma divisão no interior do próprio homem. A questão muito actual da instituição dos direitos dos animais entronca aqui. Mas surge quase sempre envolvida num discurso primário, que cai na armadilha de usar as mesmas categorias, embora invertidas, da tradição humanista e antropocêntrica. Ora, é preciso dizer que tal discurso não contamina as fotografias de João Tabarra, que se situam num outro plano (se assim não fosse, certamente que ele não teria obtido a colaboração e a cumplicidade de Elisabeth de Fontenay). A tradição idealista e humanista da nossa cultura caucionou e promoveu uma dominação do homem que, na verdade, é dirigida contra os animais. Adorno, mostrando que nada é mais odioso para Kant do que a possibilidade de descobrir uma semelhança ou uma afinidade entre o homem e o animal, concluiu que “para um sistema idealista, os animais desempenham virtualmente o mesmo papel que os judeus para um sistema fascista”. Estas comparações encontraram o seu exemplo extremo numa afirmação do escritor Isaac Bashevis Singer, segundo o qual os animais estariam condenados a “um eterno Treblinka”. Mas evitemos seguir nesta direcção (de grande afluência, aliás) porque ela nos afasta tanto das fotografias de João Tabarra como de Elisabeth Fontenay, hostil a tais comparações. Sigamos, pois, na direcção sinalizada pela tensão humanidade/animalidade que as fotografias expõem, isto é, aquela que nos leva a uma possível política da animalidade e a uma política animal. E essa política começa pela contestação de um “traço distintivo” do homem. Derrida “desconstruiu” essa especificidade partindo de um episódio pessoal: ao sair do banho, nu, sentiu que estava a ser olhado pelo seu gato e experimentou o sentimento de pudor. Nesse olhar, ele viu que o homem não tem a exclusividade do olhar sobre as outras espécies (e aqui o fotógrafo João Tabarra tem que se confrontar com este desafio: haverá algo mais antropocêntrico que o olhar fotográfico?). Na concepção de um Agamben, que se situa numa dimensão pós-humanista e pós-metafísica, a procura dessa “especificidade” foi sempre a prerrogativa da “máquina antropológica”. E só tornando essa máquina inoperante é que é possível uma forma diferente de vida política. Essa seria a genuína tarefa política que temos pela frente (e não a tagarelice da expansão do humanismo e o aperfeiçoamento da democracia). Nesta perspectiva, as fotografias de João Tabarra constituem um enorme desafio.

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