Sim, a “geração curtas” está mesmo em crise

Em fim de festa do Curtas Vila do Conde, a competição nacional confirmou uma crise que não é só do formato mas que se sente nele de modo mais agudo

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Cinema de Rodrigo Areias
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Cinema de Rodrigo Areias

Perguntávamos há alguns dias, ainda o concurso nacional do Curtas Vila do Conde 2014 estava a começar, se a “geração curtas” que tanto trouxe ao cinema português estaria em crise. Vistos os 17 filmes na selecção competitiva, a resposta é claríssima: sim, está.

E os próprios realizadores, nas suas breves apresentações antes da projecção, sublinharam como a produção actual é “arrancada a ferros”, esticando o pouco dinheiro que ainda se vai conseguindo (em vários casos através de apoios ou residências artísticas internacionais), e reflectindo-se mesmo dentro da própria dimensão narrativa dos filmes. Ele é a mala cheia de dinheiro do disparate pseudo-Godardiano de Levantamento de Jacinto Lucas Pires; o desespero existencialista sem futuro do cerebral e gélido O Pesadelo de João de Francisco Botelho; a penhora iminente da sátira falhada Fortunato de João Rodrigues (parte do programa de produção de Guimarães que só agora chega ao écrã); ou a autofagia de uma fábrica que se alimenta de si própria no vazio exercício de género de Patrick Mendes, Os Sonâmbulos.

Mas a entrada competitiva que melhor soube articular estas questões de modo elegante e simples foi Cinema, de Rodrigo Areias, que cristaliza em dez minutos a crise da cultura portuguesa, a nostalgia de tempos melhores e a raiva contra o estado das coisas. Um homem prepara uma sessão numa sala de cinema em ruínas: a sala é o abandonado Jordão em Guimarães, o filme (sabê-lo-emos no genérico final) é o Silvestre de João César Monteiro, o projeccionista é Acácio de Almeida, lendário director de fotografia do cinema português. E Cinema – dos raros filmes a ser projectado em película - é um requiem pungente pelo que já não existe, tanto mais perturbante quanto a sua dimensão nostálgica transporta algo de perigosamente fatalista, paredes-meias com o saudosismo.

Houve, claro, motivos de satisfação nesta selecção competitiva do Curtas - mas vieram maioritariamente de cineastas com mais experiência, como Areias, Miguel Clara Vasconcelos (cujo filme-poema visual Triângulo Dourado dilui a sua sedução numa duração claramente excessiva), Sandro Aguilar (de regresso à sua melhor forma com False Twins) ou Teresa Villaverde. O caso desta última é um pouco diferente: Sara e a Sua Mãe foi feito como parte do filme colectivo Pontes de Sarajevo, e a intensidade emocional de Villaverde não se consegue soltar em apenas dez minutos; mas reconhece-se ainda assim neste instantâneo breve e solto a personalidade da realizadora.

Dos “jovens” a darem os primeiros passos, retenham-se dois nomes: Simão Cayatte, cujo Miami, eficaz e desenvolta adaptação de Teolinda Gersão que aborda os perigos da cultura dos famosos, é um bom exemplo de uma “segunda linha” de cinema narrativo que tanta falta faz à produção portuguesa; e Marco Amaral, cujo Outono é uma curta atmosférica de extraordinário e cuidado trabalho formal que faz pensar num Sandro Aguilar mais bucólico e emocionalmente tranquilo. Ambos são filmes em busca de uma personalidade, mas que têm a noção precisa do tempo certo de que necessitam para contar a sua história.

Tal, aliás, como os mais significativos “passos em frente” de jovens realizadores: a bonita e melancólica animação de David Doutel e Vasco Sá Fuligem, e o observacional instantâneo matinal de Mariana Gaivão First Light. A modéstia comum aos quatro não é um problema, mas pareceu-nos um limite (talvez temporário?) a voos mais altos; valerá a pena continuar a segui-los, mas haverá sequer, pelo meio da crise, a possibilidade de eles continuarem a filmar?

Convirá, em todo o caso, explicar que não são só os “velhos” a fazer filmes interessantes, nem são só os “novos” a darem tiros no pé (basta olhar para o descoroçoante Taprobana, de Gabriel Abrantes, com uma ideia de génio - Camões alcoólico, drogado e tarado sexual em busca dos 15 minutos de fama – desbaratada numa sitcom quase boçal). A crise, quando chega, toca a todos – e, para o bem e para o mal, foi isso que o Curtas 2014 provou. Na esperança, mesmo que infundada, de as coisas melhorarem para 2015.

 

 

Crítico de cinema
 

 

 
 

 

 

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