Silêncio, Brasil. Você está na TV

Num país-continente com tantas e tão grandes desigualdades, as telenovelas têm sido cruciais na construção de uma narrativa e de uma cidadania nacionais para o Brasil. Agora, a gradual perda de audiências indica que o seu poder normalizador pode estar a esbater-se.

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Natália do Vale e Bruna Marquezine gravam em estúdio uma cena de Em Família Gianne Carvalho/Globo

As telenovelas brasileiras estão longe de ser uma ficção. O quotidiano de milhões de brasileiros é marcado de facto por estes produtos mediáticos, que impõem temas polémicos na agenda, desafiam a política e abrem caminho para um país aberto, tolerante e progressista. As telenovelas têm um efeito dinamizador ímpar no país. Nem o futebol tem a mesma força.

Sem as telenovelas, talvez um cidadão do Sul não entendesse um outro do Nordeste. Talvez a emancipação das mulheres não tivesse sido tão abertamente debatida nos botecos. Talvez um pai conservador nunca tivesse conversado com a família sobre a homossexualidade. Certamente, os quase 200 milhões de brasileiros não partilhariam histórias comuns.

O fenómeno é estudado há décadas, naturalmente com destaque para os investigadores brasileiros, mas também para os ubíquos norte-americanos e para os portugueses. Em 1992, o processo de legitimação deste género televisivo como objecto de estudo sofreu forte impulso, quando a Universidade de São Paulo criou o Centro de Estudos de Telenovela (CETVN).

A academia ganhou uma referência. O mundo ganhou um centro de investigação dedicado a produzir pensamento científico sobre um fenómeno de massas que já então influía no quotidiano de milhões de pessoas, interligando-as, moldando as expectativas, os modos de relacionamento e a própria realidade, e gerindo os momentos-chave do progresso social.

Num artigo publicado em 2009, na revista científica MATRIZes, a actual coordenadora do CETVN, Maria Immacolata Vassallo de Lopes, diz que “a novela conquistou reconhecimento público como produto estético e cultural, convertendo-se em figura central da cultura e da identidade” do Brasil. A investigadora defende que as telenovelas ajudaram a criar um “novo espaço público”, que deixou de ser “monopólio de intelectuais, políticos e governantes”.

Mais do que um novo espaço público, as telenovelas vêm gerando desde os anos 1950 uma “narrativa da nação”, nas palavras de Maria Immacolata Vassallo de Lopes, por serem capazes de “alimentar” um “repertório comum” a toda a sociedade brasileira. (Um repertório muito bem nutrido: só a Rede Globo tem pelo menos três telenovelas diárias desde 1975.)

É um fenómeno transversal, que atinge toda a população, independentemente de classe social, género, orientação sexual, cor da pele ou localidade de origem e de residência. As telenovelas organizam o mundo caótico e servem-no em doses diárias controladas, repetindo temas universais – o amor, a ascensão social – e assegurando que o bem vence o mal.

Os desenlaces são moralistas e mantêm uma certa ordem social, passando a ideia de que no fim os bons serão recompensados e os maus penalizados, apesar de as personagens se terem vindo a tornar mais complexas e menos maniqueístas. No entanto, a verosimilhança da ficção, que afecta o discernimento individual do telespectador, é também o que torna tão prementes os debates sobre temas polémicos que as telenovelas lançam na sociedade brasileira.

Mesmo explorando histórias dicotómicas num país com profundas desigualdades sociais – litoral-interior, cidade-campo, Norte-Sul, asfalto-favela, ricos-pobres –, “a novela parece configurar-se como uma linha de força na construção de uma sociedade multicultural no Brasil”, como diz Vassallo de Lopes. É ela que induz debates sobre novos arranjos familiares, emancipação feminina, casamentos inter-raciais, homossexualidade, direitos das minorias, violência, clonagem – um sem-fim de temas com os quais pretende fomentar a tolerância.

Não normaliza: lança o debate, desafia, provoca reacções. Continuando com Vassallo de Lopes, é possível dizer que “a novela passou a ser um dos mais importantes e amplos espaços de problematização do Brasil”. Também por isso não será despiciendo que a Globo, por exemplo, intervale as suas telenovelas com blocos informativos: qual será exactamente o país real?

Uma das mais populares teorias sobre os mass media nas últimas décadas, a Teoria do Cultivo do húngaro George Gerbner, defende que a forma como percepcionamos o que nos rodeia é afectado pelo tempo de exposição ao “real” televisivo. Se a essa possibilidade – a teoria é sujeita a várias críticas – se adicionarem os baixos níveis de literacia brasileiros, é possível cogitar sobre a forma como o prime-time tem vindo a ser consumido como um todo.

A queda
A construção de mitos e a perpetuação de pressupostos discriminatórios são críticas comuns. A pergunta que se coloca é, portanto, se agora que “o monstro acordou”, como foi anunciado durante os recentes protestos no Brasil, agora que cresce a alfabetização e a escolaridade, agora que floresce a classe média, se será tudo isso que está a afastar os telespectadores.

Na primeira década do século XXI, de acordo com números da Deloitte, a média de televisores ligados durante o horário nobre – isto é, das 18h à meia-noite – caiu de 66% para 59%. As cinco maiores redes televisivas do país perderam 4,3 pontos de audiência na totalidade, entre 2000 e 2009. O que implica directamente as telenovelas.

Para acentuar a queda, está a aumentar o número de pessoas que têm a televisão ligada, mas para televisão por assinatura, DVD ou videojogos. O Brasil entrou na segunda década do século mais ligado à Internet do que à televisão, segundo a consultora. (O que pode esconder nas audimetrias telespectadores que passaram a ver novelas online por meios nem sempre lícitos.)

Atentando no ranking do portal O Planeta TV, site especializado em televisão, é evidente a progressiva diminuição das audiências das novelas. De Páginas da Vida (2006-07) a Em Família (que terminou na sexta-feira no Brasil e que continua a ser exibida na SIC, parceira da Globo em Portugal) verifica-se uma queda do share televisivo de 47% para menos de 30%. Na segunda estação mais vista no país, a Rede Record, passa-se o mesmo (de 17% para 6%).

Na Globo, esta quebra afecta as telenovelas de todos os horários. Nem o Mundial conseguiu manter mais telespectadores a ver as novelas exibidas antes e após os jogos. No domingo, dias depois de escrever que Em Família, a “novela das nove” que encerra o “ciclo das Helenas” do argumentista Manoel Carlos, tinha terminado de forma “irrelevante, com tédio e pior ibope [audiência] da história”, o Notícias da TV do portal UOL adiantava em letras gordas que a Globo estava a apostar “em novelão, clichés e gays” para “salvar o horário nobre”. Nem há uma semana, tinha sido a novela O Rebu a estrear com “pior ibope” no horário das 23h.

O esforço extra para recuperar audiência não tem passado despercebido. Na fase final de Em Família, a Globo voltou a emitir um beijo entre duas pessoas do mesmo sexo – no caso, entre duas mulheres, Giovanna Antonelli e Tainá Müller. O acontecimento gerou, como seria de esperar, uma onda de reacções nas redes sociais. Mas, entre os muitos comentários a aplaudir o fim do preconceito, houve quem denunciasse o momento como forçado e desesperado.

A família
“A Globo hoje em dia faz umas certas concessões que não fazia antes”, diz Susana Vieira, na passadeira vermelha para a gala com que a estação apresentou a actual temporada em São Paulo, no início de Abril. Aos 71 anos, a famosa actriz já ganhou o direito de ter uma voz crítica, mas não quer dizer exactamente do que está a falar. “Exemplos não me peçam.”

O PÚBLICO e outros órgãos de comunicação portugueses e angolanos foram convidados pela Globo a assistir ao vivo à gala, no Citibank Hall. É ainda à entrada que Reynaldo Gianecchini, galã que interpreta em Em Família um marido trocado pela esposa (Antonelli) por outra mulher (Müller), desdramatiza a questão da relação lésbica e não refere as audiências. Perguntam-lhe: é um tema na moda? “Não acho que esteja na moda. Hoje em dia, as pessoas estão mais abertas a discutir todos os temas e a homossexualidade é um tema mundial.”

As pessoas mais tradicionais estavam fechadas para ver, mas a galera jovem está muito mais apta a olhar para isso”, continua Gianecchini. “Os jovens olham com outra cabeça.” E foi isso que se viu em Amor à Vida (2013-14), que fez história – na aferição insuspeita do Financial Times – ao incluir na trama um beijo entre dois homens. “Ver o Félix [Mateus Solano] e o Niko [Thiago Fragoso] foi como ver o Brasil ganhar a Copa do Mundo”, reagiu então Jean Wyllys, o primeiro congressista brasileiro abertamente homossexual, citado pelo jornal britânico.

A decisão da Globo, que tinha gravado uma cena idêntica em 2005 mas não a exibiu, provocou o debate na sociedade brasileira, por vezes com posições muito polarizadas. Contudo, esse burburinho não foi suficiente para inverter a tendência descendente das audiências. Tal como não o tinha sido Avenida Brasil (2012), tão aplaudida nos jornais (inclusive o PÚBLICO) e com seguidores tão fervorosos – no Brasil, chegou a temer-se um apagão na noite do episódio final; na Argentina, milhares de fãs juntaram-se num estádio de Buenos Aires para ver o fim.

Uma das soluções passa por renovar o quadro de argumentistas. Rui Vilhena, o português nascido em Moçambique, crescido no Brasil e formado nos EUA, é a primeira “importação” da Globo. Vilhena, de 53 anos, que escreveu algumas das telenovelas portuguesas mais bem-sucedidas (TVI), está prestes a estrear Oogie Boogie no horário das seis, a partir de Agosto. Em conversa com os jornalistas, frisa uma e outra vez o peso da reacção dos telespectadores.

O argumentista passa também muito tempo a explicar que a produção de uma novela é um trabalho colectivo. E isso percebe-se bem no local da conversa, o Projac, um impressionante complexo com uma área total de 1,65 milhões de metros quadrados, seis mil trabalhadores e 2,5 milhões de pessoas por ano em circulação. Actores, produtores, administradores, técnicos de toda a sorte, faxineiros, seguranças, bombeiros, motoristas, recepcionistas – uma família empresarial a perder de vista, que passa longas horas junta e se atomiza temporariamente para cada produção. “A novela é uma família que praticamente mora na mesma casa. Todo o mundo muito unido”, diz-nos Bruna Marquezine, de 18 anos e actriz desde muito cedo.

Marquezine é um dos rostos mais mediáticos do Brasil, também por Neymar ser seu namorado – o que eleva o interesse da imprensa da especialidade. Apesar da queda das audiências, a atenção dada às estrelas nunca foi tanta. Nem o escrutínio. A Internet permitiu a proliferação de publicações sobre televisão e sobre a vida privada dos seus protagonistas. Na gala de São Paulo, Grazi Massafera e o casal Taís Araújo e Lázaro Ramos foram os mais assediados.

“Os fãs não me incomodam. Zero. Depende também como chegam”, explica Taís, já no Rio de Janeiro, tentando interessar-se pelas questões dos jornalistas, que insistem em perguntar pela sua vida privada. O mesmo que lhes interessa de facto na conversa com Bruna Marquezine, que por sua vez lamenta as investidas sensacionalistas de que é alvo. “Tento-me blindar ao máximo”, diz, sem todavia conseguir evitar algumas indiscrições dos interlocutores.

No final da conversa, Marquezine despede-se com a doçura com que passou toda a entrevista colectiva e regressa ao estúdio. Grita-se no escuro: “Silêncio!” É uma ordem solene para os presentes e um pedido para os telespectadores: o espectáculo tem de continuar, o espectáculo vai continuar, mas só manterá o seu poder socializador se continuar a haver quem pare para o ver.

O PÚBLICO viajou a convite da Rede Globo

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