Viagem fantástica ao metabolismo de um filme

A relação de um realizador com a sua actriz e a saga das dores de estômago dele - o cinema nas vísceras do cinema. O gosto pelo conceptual e pela escatologia. A "nova vaga" do cinema romeno, pois claro: Quando a Noite Cai em Bucareste, ou Metabolismo

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Que título, este: Quando a Noite Cai em Bucareste, ou Metabolismo. Corneliu Porumboiu não o desbarata, e é até, sobre certo prisma, um título bastante descritivo, uma vez que grande parte do filme se passa na noite da capital romena e que o metabolismo do protagonista, em sentido quase literal, surge em destaque nos momentos finais, através das imagens de uma endoscopia.

Figurativamente, e de modo menos escatológico, o filme também é uma “viagem fantástica” ao “metabolismo” de um filme, o “filme dentro do filme” em que as personagens trabalham e que é o assunto da ficção, albergado pelo cinasta dentro de uma estrutura onde abundam os jogos de espelhos, as remissões, e muita ironia. Se em todos os cineastas da  “nova vaga romena” (Cristian Puiu, Christian Mungiu, entre outros) existe um gosto pela construção conceptual, entendida como armadilha para aprisionar o espectador e fazê-lo perder-se lá dentro, talvez o maior adepto deste jogo seja  Corneliu Porumboiu, este Metabolismo o filme que o pratica com maior severidade e, em simultâneo, maior irrisão – porque há sempre o risco de isto não significar, nem pretender significar, coisa alguma, e tudo se limitar a ser, pura ainda que não simplesmente, jogo.
 
Mas vejamos como as coisas se passam, ou começam a passar, a partir do notável plano de abertura de Metabolismo. O interior de um carro, a câmara montada no banco de trás, um homem e uma mulher nos lugares da frente. Em plano fixo (porque a câmara não mexe) mas móvel (porque o carro vai avançando pelas ruas nocturnas de Bucareste), o homem e a mulher conversam, percebe-se que estão a meio do trabalho num filme, que ele é o realizador e ela uma actriz, e há uma cena complicada – uma cena de nu – a preparar no dia seguinte.

O plano dura imenso tempo, quase dez minutos, tempo que o realizador aproveita, como se estivesse a acalmar a inquietação da actriz, para uma lição de cinema: o plano longo, aquela duração máxima que a película permitia (11 ou 12 minutos, capacidade de um magasin de película de 35mm) e que com o vídeo se tornou potencialmente ilimitada mas que para o realizador continua a ser a duração estrutural da sua visão de cineasta, como se lhe fosse impossível pensar em unidades de tempo superiores a esses 11 ou 12 minutos.

A primeira ironia, para além do facto de a personagem parecer estar a comentar o próprio plano em que é protagonista, é que essa “duração estrutural” é também a de Porumboiu em Metabolismo, filme que não tem mais de uma vintena de planos (17, pelas contas do realizador), todos eles razoavelmente longos e razoavelmente fixos (há outro a bordo de um automóvel, agora de dia), em estrita coincidência com a duração de cada cena.

O filme das suas vísceras

Em conversa telefónica com Porumboiu começamos por lhe perguntar a origem desta estrutura, e deste filme que se comenta a si próprio. No princípio, responde, havia a vontade de justapor duas histórias: a relação do realizador com a actriz e a saga das dores de estômago dele (a hipocondria, como sabemos desde o Lazarescu de Puiu, também é uma característica da “nova vaga romena”). Mas havia acima de tudo “a vontade de fazer um filme que pudesse ser construído como se fosse o seu próprio making of’, desafio obviamente cheio de ironia. Mas é certo, conhecendo os anteriores filmes de Porumboiu (12h08 a Este de Bucareste, que estreou em Portugal, e Police, Adjectif, não estreado cá), que a sua afeição ao plano-sequência vem de trás, e parece fruto de um interesse genuíno, não exclusivamente irónico. O credo do realizador no filme é também o credo do realizador do filme?

“Não se pode acreditar em tudo o que a personagem diz” – mas às mentiras já iremos mais à frente – embora de facto, a esse respeito, Porumboiu se sinta próximo do que diz a sua personagem. E precisa: “A ideia de fazer um filme em planos-sequência que reflectissem sobre o plano-sequência apareceu-me quando a escola de cinema romena mudou as regras de admissão”. Dantes pediam aos alunos que entregassem, como prova de candidatura, a découpage de uma sequência, e a dada altura “passaram a pedir apenas um argumento”. Porumboiu estava “contra essa mudança, porque o argumento e a escrita são importantes mas o derradeiro e decisivo passo é a organização visual do que foi escrito, a sua decomposição num movimento”. Portanto, concluímos nós, há aqui um fundo, deliberado, de “activismo”, estético e técnico, e Metabolismo é mesmo uma espécie de manifesto pela importância da planificação.

Mas, é claro, as coisas complicam-se. Nenhum filme do mundo – ou muito poucos – está imune aos acidentes, aos imprevistos, às motivações mais obscuras e eventualmente inconfessáveis de alguém, nomeadamente do realizador. E antes que se pense que Metabolismo pega na figura do realizador para a sacralizar, eis que ele a desmascara. Sempre a jogar com encenações sobre encenações (e ainda se possível sobre mais encenações) rapidamente se percebe que o interesse do realizador-personagem está menos nas cenas que tem para ensaiar, está menos na sua teorização do plano-sequência, e mais, muito mais, naquela actriz, que ele quer, muito simplesmente, levar para a cama. Numa cena bastante divertida, os dois estão a jantar quando chega uma terceira personagem, também um realizador, que compara a rapariga a Mónica Vitti. A ironia, aqui, não é tanto a rapariga ficar indiferente ao piropo (porque nunca ouviu falar de Monica Vitti), é sobretudo a referência evocar uma das mais célebres e frutíferas relações “realizador/actriz” (Antonioni/Vitti), na linha de outras tantas tão lendárias como, por exemplo, Griffith/Gish, Sternberg/Marlene ou, porque não, Godard/Karina. Metabolismo converte-se, afinal de contas, num filme sobre os homens que ficam atrás das câmaras e as mulheres que saltam para a frente delas. Admitindo que pensou muito em filmes onde esse, de facto, é um tema forte (o Oito e Meio de Fellini, O Desprezo de Godard), Porumboiu prefere passar a uma caracterização mais abstracta e fala do interesse “nas dinâmicas que se estabelecem num plateau de cinema, nos aspectos decisivos para a forma final do filme de que elas se revestem, nas diferentes maneiras de fazer as coisas”. É porventura a derradeira armadilha deste filme, que depois de se anunciar “teoricamente” no primeiro plano passa o tempo a filmar o triunfo da prática sobre a teoria ou, para usar o vocabulário do título, o triunfo do metabolismo, que entropicamente toma conta de si mesmo e escapa a qualquer controlo racional.

Se o plano da endoscopia parece o corolário lógico do auto-centramento do realizador – é o filme das suas vísceras – ele também configura um “excesso” de realidade, de realidade física em primeiro grau, que por paradoxal que pareça (mas os paradoxos abundam aqui) também passa por ser uma fuga à realidade, palpável e quotidiano. Neste filme tão maníaco, tão “concreto” mas também tão fugidio, onde é que está essa realidade romena que se via tão bem, e tão directamente encarada, nos outros filmes de Porumboiu?

“É um registo diferente, na verdade, mas penso que a realidade romena vem à superfície nalguns momentos, por exemplo quando as personagens falam em emigrar para a França”. Mas também “todo este movimento, esta pulsão criativa”, que Porumboiu diz “corresponder a uma atitude política que tem raízes fundas na cultura romena”.

Filme que se “desconstroi”, na acepção mais prática da palavra, a um ponto próximo do limite de qualquer sentido tangível, mas também um filme que é um desafio constante ao espectador,  estará entre as obras mais singulares deste ano, reitera a vitalidade do cinema romeno para além de uma questão de moda, e aproxima Porumboiu de Cristi Puiu na primeira linha da “nova vaga romena”.

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