Sexo, álcool e assombrações

O Homem Verde é o romance que Kingsley Amis decidiu que traçaria uma bissetriz irónica sobre a sua vida. A partir daí, entre funerais, orgias e bebedeiras, não teria nada a perder

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Amis agarrou-se ao princípio de que mais vale rir para não chorar, como quem se agarra a uma tábua de salvação CHRISTOPHER CORMACK/CORBIS

A certa altura de O Homem Verde, o seu protagonista Maurice Allington (o gerente de uma rural estalagem inglesa) recorda que “não há velocidade que permita a alguém escapar de si mesmo”. É uma pausa forçada na vida de um homem que anda num constante virote a tentar gerir o negócio, a família nuclear que inclui uma amante que se deixa convencer a estrear-se num ménage à trois com a sua própria mulher, e um pai que acaba de sair de cena depois de ter visto um fantasma que passa a partir daí a assombrar o filho.

Kinsgley Amis tinha quase 50 anos quando concluiu este enorme divertimento, um romance hilariante que brinca com dois tipos de fantasmas: os escorregadios e nómadas que brincam às histórias do antigamente, e os outros mais sedentários e definidos que assombram a vida sexual de todos os dias.

Às vezes tem-se a impressão de que Amis se agarrou ao princípio de que mais vale rir para não chorar, como quem se agarra a uma tábua de salvação. A descrição da milimetricamente preparada orgia parece uma partida de xadrez descrita em retrospectiva: “Achei que era difícil o meu braço deslizar por baixo do ombro dela, porque o braço de Joyce também por lá estava, e impossível tocar no seio de Diana pelo lado de fora, porque o seio de Joyce estava entalado contra o que sobrava daquele. Quando tentei uma manobra semelhante mas a um nível mais baixo, deparei-me com a parte de cima da coxa de Joyce. Depois disso, tentei mudar as posições das raparigas de modo a ficarmos a fazer amor a três numa das posições que Joyce mencionara na sua maneira pouco polida na noite anterior. Isso implicava que a coxa dela tinha mesmo de mudar de posição, mas ficou onde estava. Para chegar à Diana por detrás nem valia a pena tentar, visto que tinha a parte de dentro das coxas entre as coxas de Joyce. Nunca é fácil mover o corpo das pessoas a menos que estas cooperem um bocadinho, e nenhuma delas o estava a fazer” (pág. 196).

Hoje em dia há quem se entretenha a tentar vislumbrar quando é que o jovem escritor que integrou o revolucionário movimento dos Angry Young Men, que teve o seu apogeu nos anos a seguir à Segunda Guerra Mundial, se tornou reaccionário. Aqui não foi de certeza. Aliás o romance em tom agre e satírico antecipa, sobretudo no que ao sexo diz respeito, a fórmula que vai ser retomada pela geração de escritores que já nos anos 80 tomam o relevo da cena literária britânica. O principal nome que nos vem à cabeça é o de David Lodge que lá mais para a frente, quando atingir a meia-idade, fará catarse com a sua própria surdez.

Amis, Maurice por ele, escolheu o álcool e o sexo como paliativos: “Mastigar a vil textura da carne, extrair espinhas de bocados insípidos de peixe ou aguentar a completa nulidade dos legumes não são coisas que eu ache um regalo. Pelo menos, o sexo não requer um excesso simultâneo de conversa, e beber dispensa a mastigação.” Esta escolha conforma-lhe os dias: “A vida e a morte não eram problemas, apenas pontos à volta dos quais um certo equívoco bastante limitado tinha tendência a aglutinar-se”

Escolhendo tal como no romance Os Velhos Diabos o campo como exemplo de um inferno na terra este romance de Kingley não desiste de ser uma fábula moral, apontando a alguma redenção e é por isso que Maurice carrega o fantasma até ao fim do livro. Quando o demónio é finalmente exorcizado num clímax trapalhão que não aterroriza ninguém, e percebemos que tudo não passou de um número algures entre o comboio fantasma de uma feira e a comédia de boulevard, Maurice incorporou em si uma espécie de chip que o ajuda a partir desse dia suportar a rotina das contas e da família, desagregada ou não: “A morte era a única maneira que eu tinha de me livrar de uma vez por todas deste corpo e de todos os seus pseudossintomas de doença e medo”.

Maurice parece condenado a viver muitos anos e nós andámos a ler um romance hiper-realista camuflado de outros géneros. 

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