Serralves, para que te quero?

Talvez precisemos mesmo de uma boa dose de subversão; de movimentar os corpos e fazer um pouco de ruído no parque e nos salões.

Aos domingos de manhã iremos novamente à missa ouvir órgão e ver arte sacra sem pagar, talha dourada e imaginário variado dentro do estilo e snifadelas de incenso. Rezaremos também, que, mesmo não sendo grande a crença, sempre alivia de outras contrariedades como esta da majestática fundação de Serralves que definitivamente está para o negócio, os casamentos e festividades, as festarolas, as contagens de bilhetes, a cegarrega do ambiente e outras distracções.

No domingo passado estava mau ambiente. O pessoal não anda com muito dinheiro nos bolsos, chovia e havia exposição nova para admirar ou para engolir respeitosamente uma seca do mundo da arte erudita e os seus ataques de auto-referencialidade circular. Aquelas brancuras e despojamentos prestam-se ao ritual do passo lento, o olhar entre o circunspecto e o distraído, a selfie e a conversa de ocasião. Mas no domingo passado era preciso pagar. Depois de anos em que esta santa casa proporcionou um alargamento nunca visto do número de visitantes, da sua diversidade social e do trabalho continuado com as escolas e a rapaziada, afunilou agora para o negócio. Os “públicos” passaram de cidadãos a clientes e as artes cumprirão os seus ofícios de fazer render a bilheteira. Ficará tudo mais sustentável. Quem quiser que vá tomar um café ao bar que o preço ainda é simpático (para já).

Pensava que os exércitos de operárias e operários pobres e explorados que contribuíram para a acumulação primitiva do capital industrial têxtil que pagou a folia e o requinte de Serralves estavam finalmente justiçados com a abertura do jardim e do museu à res publica. Engano. O Estado e os tios e tias dos fundadores da fundação mais as suas empresas e piedosas obras de mecenato e outras manobras de distinção e tudo que lhes dá um verniz de arte contemporânea e de empenhamento social decidiram apoiar esta decisão inteligente e oportuna num tempo em que a entrada grátis ao domingo de manhã era mais que justificável.

Se a fundação não tem guito, que mude a programação e, em vez da arte pop, do minimalismo, do pós-minimalismo, da arte conceptual e da arte povera, que invista mesmo na arte pobre para os pobres. Ficávamos mais contentes, permanecia o amor ao museu e seguiríamos mais conciliados com uma verdadeira arte capaz de iluminar a nossa condição contemporânea de estarmos por conta de um punhado de ricos escandalosamente ricos a reinar num planeta de pobres desgraçados aos milhões.

Mas não, antes as missas das indústrias criativas, do desenvolvimento sustentável, das biclas, da natureza, dos animais, das vacas e dos bois que pastam na Quinta do Mata Sete. Diz Jacques Rancière que a estética e a política são a engrenagem da partilha do sensível — “as artes só emprestam aos projectos de dominação ou de emancipação aquilo que lhes podem emprestar, ou seja, muito simplesmente aquilo que têm em comum com eles: posições e movimentos dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível. A autonomia de que elas podem usufruir ou a subversão que podem reivindicar assentam sobre esta mesma base”.

Talvez precisemos mesmo de uma boa dose de subversão; de movimentar os corpos e fazer um pouco de ruído no parque e nos salões. Coisa de estética refinada, claro, performativa e criativa como convém — instant art e outras coisas esquisitas enquanto obras de arte de intervenção, sei lá, fazer uma exposição de vestidos de chita e rasgá-los, organizar lançamentos de cascas de batata por cima dos muros do parque, manobras aos domingos de manhã com drones farmacopornográficos patrocinados pela TAP e, talvez, carraças sobre os liquidâmbares e outras actividades sustentáveis, resilientes e participadas.

Triste, é o que é.

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