Sentir primeiro, pensar depois e dançar sempre

Nova criação de Rui Lopes Graça mistura bailarinos e músicos numa peça atravessada por emoções violentas, desmesuradas. Porque havemos de estar sempre a pensar?

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Cortesia: Rodrigo Sousa/CNB
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É na cabeça que nos refugiamos. Nas teorias, nas regras, nas rotinas que criamos para nos sentirmos seguros. Mudança, incerteza e dúvida, motores de criação inequívocos, são ingredientes indesejados no dia-a-dia da maioria das pessoas. “Porque havemos de estar sempre a pensar?”, parece perguntar Rui Lopes Graça em jeito de provocação em Tempestades, a peça que se estreia na sexta-feira no Teatro Camões, em Lisboa. “Porque insistimos em limitar as hipóteses de nos surpreendermos com o que acontece?”

Catorze bailarinos e 13 músicos formam em palco uma massa em movimento. Confrontam-se e contaminam-se em solos e duetos que compõem uma intrincada malha tecida pela música de Joseph Haydn (1732-1809) que Lopes Graça e o compositor e músico Pedro Carneiro escolheram. Na origem de Tempestades está o desafio que o primeiro recebeu da directora da Companhia Nacional de Bailado (CNB), onde é coreógrafo residente, para trabalhar com músicos “de forma não convencional”, a que se seguiu uma sugestão do segundo – explorar o Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), movimento artístico do século XVIII com reflexos na literatura, no teatro ou na música que veio afrontar a racionalidade iluminista e as regras espartilhantes do neoclassicismo francês.

“O Pedro falou-me do Sturm und Drang e aquilo interessou-me logo”, diz ao PÚBLICO Lopes Graça, a poucos dias da estreia. “Eu que sou muito emoção, e que gostava de ser mais ainda, quis logo pegar neste movimento que defendia a espontaneidade, os sentimentos exagerados e dominadores da vida, por oposição ao racionalismo.”

Para quem conhece tão bem a CNB como Lopes Graça, seleccionar os intérpretes não foi difícil. O núcleo a que o coreógrafo chegou é muito jovem e parece disposto a arriscar. Fê-lo, pelo menos, ao longo de um processo de composição que exigiu desconstruções permanentes a partir de uma linguagem que todos dominam, a da dança clássica.

A cada um dos bailarinos foi pedido que construísse quatro frases coreográficas recorrendo a 32 elementos do vocabulário clássico. Chegados a esse material inicial, Lopes Graça propôs-lhes que atribuíssem a cada frase uma das emoções em que o Sturm und Drang se apoiava (medo, alegria, tristeza e raiva) e que retrabalhassem o movimento tendo em conta esse novo contexto.

“Pedi-lhes que destruíssem a forma a que tinham chegado em função de uma emoção e assim fomos avançando, devagarinho. Destruir para construir tornou-se uma constante até chegarmos à matriz da peça”, explica o coreógrafo, admitindo que o exercício se tornou ainda mais interessante porque foi feito no contexto de uma companhia que está mais habituada a materiais pré-definidos.

Com o que trouxeram Rui Lopes Graça compôs, mas de forma não linear, surpreendendo bailarinos e músicos (da Orquestra de Câmara Portuguesa, que Pedro Carneiro dirige), que se misturam neste Tempestades e cuja troca de figurinos brinca, por vezes, com o olhar do espectador.

A dança de Lopes Graça e dos seus bailarinos e a concepção musical de Carneiro, ancorada em andamentos de três sinfonias de Haydn – o maestro trabalha-as, criando as ligações entre trechos e propondo uma nova leitura das partituras do compositor austríaco -, fazem de Tempestades, garante o coreógrafo, “uma peça em que se mostra que aquilo que o Sturm und Drang defende ainda nos faz falta: pôr o que se sente acima do que se pensa”.

O movimento alemão continua a inquietar hoje porque, diz o coreógrafo, o homem não revela qualquer “vontade de emoções selvagens” e precisa, por isso, da “espontaneidade, por vezes descontrolada, desmesurada”, que se reconhece nas sinfonias de Haydn ou em Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774), de Goethe, uma das obras de referência deste movimento que antecede o romantismo e que, como ele, exacerba sensações.

No palco, a raiva e o medo, a alegria e a tristeza vão transformando os rostos dos bailarinos, expondo uma tensão constante entre a forma e a sua destruição, entre a forma e a emoção. No fim, como na obra de Goethe em que um jovem se suicida por causa de um amor não correspondido, a morte chega. Só que aqui, sublinha Lopes Graça, “aparece como a coroação de uma vida cheia”: “O que vai morrer não tem medo, está sereno. A morte é uma plenitude.”

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