Sensibilidade e imponência

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Gustavo Sumpta e Catarina de Oliveira em coabitação difícil DR

Esta exposição apresenta dois artistas cujo trabalho aparentemente nada tem em comum a não ser o modo como se enfrentam neste novo espaço expositivo de Lisboa. Catarina de Oliveira apresenta um conjunto de pinturas sobre tecido e Gustavo Sumpta um conjunto de esculturas feitas a partir de materiais banais. Não há um título comum ou uma proposição que dê o mote para a apresentação deste conjunto de trabalhos. A haver ligações, são as que o espectador, em total liberdade, estabelece, cria e advinha entre cada um daqueles dois universos. Pode perceber-se uma espécie de jogo entre a delicadeza das pinturas e a força e a rudeza dos gestos apresentados pelas esculturas: pigmento sobre tecido versus barris, baias metálicas e fita de cassete VHS. 

As pinturas têm uma forte componente geométrica que se conjuga com elementos de uma paisagem escondida pela superfície homogénea e monocromática. Parecemos estar face a um encontro entre abstraccionismo e pintura de paisagem e é neste confronto que se aloja a pregnância destas obras de Catarina de Oliveira. Obras cativantes, sensíveis, que envolvem o espectador — mas o seu conjunto é insuficiente para mostrar a ambição e o alcance do trabalho. Sobretudo quando confrontadas (quase esmagadas) pelas muito fortes esculturas que inundam o espaço desta galeria.

As esculturas de Sumpta transbordam o seu espaço natural e próprio. Através do recurso a um muito limitado conjunto de matérias e gestos, o artista realiza uma intensa vertigem espacial, criando ritmos, profundidades e muito, muito movimento. Os seus materiais são os restos (também podemos pensar em vestígios) da vida da cidade, coisas deitadas fora e tornadas inúteis por uma sociedade caracterizada pela rápida velocidade de substituição dos seus bens e ferramentas. Matérias assumidas enquanto materiais escultóricos não através de uma elaborada retórica conceptual sobre as coisas comuns da vida quotidiana, mas através de gestos rápidos, simples, intuitivos. Os títulos das esculturas — JoãoBilhasMiguel — revelam não só a sua proximidade da vida de todos os dias, como também a sua inscrição num plano comum, próximo, real.

Estas obras de Sumpta têm muitas qualidades formais e revelam como este artista é exímio a fazer espaço a partir de muito pouco, quase nada. E fá-lo usando gestos que transmitem às suas esculturas uma energia e uma vitalidade surpreendentes e pouco comuns. Mas as suas qualidades não são exclusivamente formais, estão também no confronto com a realidade que o artista de cada vez convoca. Um confronto duplamente crítico porque estabelece um espaço próprio para si distante do universo da arte construída a partir de citações e apropriações dos lugares comuns e clichés da história da arte, e depois crítico na maneira como olha para a realidade. Não são obras autofágicas alimentando-se de si mesmas, são obras comprometidas com o mundo real e material. E é partir deste confronto que é gerada a sua narrativa: barris de petróleo derramados sobre as nossas cabeças a inundar (destruindo) todo o nosso quotidiano; baias metálicas usadas pelas polícias com as marcas dos seus usos repressivos e violentos; tudo isto conjugado com os nomes comuns com que são chamados estes trabalhos, nomes próprios assinalando a vida invisível que desta forma se torna presente e se expressa. 

Este é a segunda exposição neste novo espaço de Lisboa gerido pelos artistas António Bolota e Marco Pires. Um lugar notável que promete uma programação intensa e importante. A presente proposta expositiva é relevante na maneira como junta dois artistas com presenças tão distintas, mas o resultado é desequilibrado: mesmo se pensarmos num possível jogo entre a sensibilidade de Oliveira e a imponência de Sumtpa como leitmotiv, ele falha. Não porque as esculturais sejam monumentais, mas por serem tão imponentes na maneira como absorvem todo o espaço, todas as coisas e toda a realidade circundante que tornam invisível qualquer outra presença. 

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