Sendo que

Tão frívola é a motivação deste texto e tão inútil o seu propósito que no final só fica um rasto de ociosidade. Trata-se, digamos com ênfase e presunção, de isolar uma praga da linguagem, um apêndice sintáctico “duro e resistente como o granito”, para utilizarmos as palavras que serviram a Hannah Arendt para definir a estupidez. E agora que a “coisa” já começou a ganhar alguma dignidade, por via da citação culta, é altura de nomeá-la: trata-se da conjunção “sendo que”, em regime de proliferação desde há já bastante tempo no medialecto, isto é, no dialecto próprio dos media em sentido lato (na imprensa escrita, na rádio e na televisão). Não é exclusiva de um jargão profissional específico, não é um “idiotismo” de profissão, e por isso é que se difundiu como uma praga medialectal (a obediência ao novo Acordo Ortográfico obrigar-nos-ia a escrever “medialetal”, introduzindo assim uma ideia funesta que nem a metáfora da praga, por muito demagógica que seja, consente; fiquemo-nos, pois, por pragas menos letais). É uma doença que atacou os híbridos, “sendo que” — ei-lo, com aspas, formulado como uma demonstração metalinguística — os híbridos são os políticos, comentadores, etc. Neste caso, nem é uma conjunção causal. E não vamos aqui discutir qual é o seu uso considerado gramaticalmente correcto e aquele que é considerado incorrecto: a questão normativa, do ponto de vista gramatical, fica de fora. Em todos os casos, agora que entrou no medialecto e ganhou a condição de um espasmo colectivo, não consegue ser mais do que um tique gerundivo que se apanha por mimetismo. Este tique sintáctico é, no discurso, “uma pequena zona endurecida, sinal de uma ferida cuja superfície é insensível”. A citação, agora, é de Adorno, mas refere-se evidentemente a outra coisa, ainda e sempre a estupidez — que ele também entendeu, de certa maneira (mas não exclusivamente) como uma formação medialectal e, grosso modo, cultural. Como já se percebeu pelas citações, este texto parte de um princípio de equivalência entre a estupidez e os actos linguísticos, entre a estupidez e a linguagem, tanto no aspecto lexical como no aspecto sintáctico; e é uma prova do fascínio que ela exerce e da impossibilidade de não ser contaminado por ela. Mas como pensar nisso é paralisante, e todas as precauções, neste domínio, estão condenadas ao fracasso, avancemos. “Sendo que” é uma forma torpe, equivale a uma injunção mecânica e a um reflexo mimético, abre um espaço liso no momento em que surge, contamina tudo à sua volta e torna-se motivo para uma suspeita mais funda: a de que não é uma pequena anomalia, um momento pontual em que sucumbe o discurso e é rasurado qualquer vestígio de algo a que possamos chamar ideia ou pensamento. Pelo contrário, o “sendo que” torna plausível a suspeita de que a anomalia pode estar por todo o lado, antes e depois. O tique correspondente ao “sendo que” é como um esgar lançado ao leitor, ao espectador, ao ouvinte, ao interlocutor, e funciona como o estereótipo, é dotado de uma forma de vida parasitária, expande-se e multiplica-se por incrustação. A longa vida do “sendo que” e a sua capacidade de se difundir encerram um mistério: porque é que há palavras e expressões que “pegam” e se tornam uma praga? Onde está a origem, a fonte do caudal que vai engrossando? O que há nessas palavras e expressões que as torna tão obrigatórias e faz com que elas passem a ser repetidas sem moderação? Barthes escreveu uma vez que a língua era fascista porque obrigava a dizer. A lógica do medialecto pode ser analisada por este critério. 

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