Entre o poder da arte e o poder do dinheiro

Dois documentários que estreiam esta semana ajudam a reflectir sobre a relevância dos museus e a pressão que hoje sofrem para se transformarem em máquinas de entretenimento. Os cortes no financiamento público obrigam as grandes colecções a gerar mais receitas do que nunca. Que lugar ocupam, afinal, a arte e o conhecimento? O que se perde quando se fala tanto de dinheiro?

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Imagem do documentário National Gallery, de Frederick Wiseman, sobre quem recaíram as críticas mais duras, talvez por ter sido também ele a gerar maiores expectativas DR
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The Great Museum, do austríaco Johannes Holzhausen. A vulnerabilidade da arte, para o papel do museu enquanto instrumento de conhecimento DR

Os dois documentários começam da mesma maneira: funcionários limpam as galerias desertas, aparentemente alheios ao que se passa nas paredes e nas vitrinas. E o que se passa nas paredes e nas vitrinas é da melhor arte que a Europa tem para oferecer em duas colecções distintas.

De um lado, The Great Museum, do austríaco Johannes Holzhausen, e o Kunsthistorisches Museum de Viena, cápsula do tempo que convoca uma dinastia poderosa, a dos Habsburgos. Do outro, o papa dos documentaristas norte-americanos, Frederick Wiseman, num dos seus habituais voos demorados sobre instituições públicas, National Gallery, de olhos postos no museu londrino que é o quarto mais concorrido do mundo, ultrapassada que está a barreira dos seis milhões de visitantes por ano (6,4 em 2014, para sermos mais precisos).

Holzhausen e Wiseman viajam pelos bastidores, sentam-se para assistir a reuniões e visitas guiadas, pegam em luvas e pincéis nos laboratórios de restauro, conversam com peritos em pintura antiga, observam com distância o público  nada nos é dado a partir da sua perspectiva nem nunca o ouvimos a falar sobre esta ou aquela obra que já nos cansámos de ver reproduzida  e deixam-nos (ainda bem) com uma série de perguntas sem nunca ensaiarem respostas. Muitas têm a ver com dinheiro  a pressão para que os museus gerem receitas é uma constante  e como ele, ou a falta dele, tem vindo a alterar a sua relação com quem o visita; outras, talvez as mais subtis mas não menos importantes, apontam para a vulnerabilidade da arte, para o papel do museu enquanto instrumento de conhecimento, para a transmissão de saberes e para o puro prazer que é conviver com aquilo que nos comove. E com a beleza.

Os dois documentários foram recebidos com críticas díspares, embora sobre Wiseman tenham recaído as mais duras, talvez por ter sido também ele a gerar maiores expectativas. Apreciações à parte, é seguro dizer que ambos abrem espaço à reflexão. Que papel têm hoje os museus na construção da identidade? O que estão eles dispostos a perder no caminho para a auto-sustentabilidade? E que lugar ocupam o conhecimento e a arte quando tanta energia é gasta a pensar em formas de fazer dinheiro? Como podem os museus tornar relevantes para o público contemporâneo as suas colecções históricas? Perguntas que podemos hoje, muito especialmente, associar à inauguração do Museu Nacional dos Coches, em Lisboa, um projecto envolto em polémica para um dos mais populares acervos nacionais e um dos melhores do mundo no seu género.

O Ípsilon conversou com dois directores de museus portugueses sobre os desafios que hoje enfrentam no seu papel de mediadores. Tudo para saber que leitura fazem da tensão que existe entre a esfera científica e a vertente comercial quando se trata de trabalhar colecções. Um, mais optimista, garante que o actual cenário decorre de “uma evolução natural"; o outro traça um retrato em que o museu parece estar quase sempre em perda.

Puramente comercial
Para Pedro Lapa, historiador de arte e director do Museu Colecção Berardo – um acervo privado exposto num espaço que recebe capitais públicos, o Centro Cultural de Belém, em Lisboa –, o maior desafio prende-se hoje com a salvaguarda da relação do museu com o conhecimento e a experimentação num quadro em que há uma pressão enorme para que ele se transforme num foco de entretenimento de massas. Lapa está a falar no museu em geral: “O discurso dominante, que está sempre a sublinhar a necessidade de os museus caminharem para a auto-sustentabilidade, corrompe a própria noção de museu enquanto centro de conhecimento, como uma cápsula do tempo de grande subjectividade crítica. Essa noção está em risco e em nome da tal auto-sustentabilidade, que não passa de uma falácia.”

A introdução de dimensões puramente comerciais tende a construir um modelo de museu que agrada ao poder político porque gera dinheiro. E agrada mesmo quando hipoteca a investigação e a comunicação de qualidade dos acervos, argumenta o historiador de arte que durante 11 anos (até 2009) dirigiu o Museu do Chiado, que guarda a colecção pública de arte portuguesa desde 1850 à actualidade. 

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Em National Gallery, Frederick Wiseman parece apostado em mostrar a sua admiração pelas equipas do museu. Acompanha os restauradores de pintura ou deixa-se ficar a ouvir um conservador falar de um Sansão e Dalila de Rubens DR

Sempre muito crítico em relação às opções públicas para o sector dos museus, Lapa diz dirigir hoje uma instituição que funciona, na prática, como a grande colecção nacional de arte contemporânea. Afecto a uma fundação, com entradas gratuitas e mais de 570 mil visitantes no ano passado (cerca de 48% é público escolar), o Museu Berardo não pode comparar a sua situação à dos museus públicos. “Como director do Museu do Chiado, lembro-me bem, um dos objectivos primordiais que me eram dados pela tutela era o aumento de receitas na bilheteira e na loja. Não se falava de programa, mas falava-se muito de dinheiro.” 

António Filipe Pimentel, director do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), que em 2014 passou a ser o mais visitado dos museus públicos portugueses (quase 222 mil entradas), não partilha esta “visão bipolar”, em que o director se vê obrigado em escolher entre o estudo ou a divulgação das suas colecções, garantia de maior visibilidade e de maior receita. “Aquilo a que assistimos hoje não é uma mudança de paradigma, é uma evolução. O museu é chamado a garantir duas dimensões – uma que se prende com o facto de continuar a ser um centro de conhecimento aberto a uma fruição individual; e outra, de grande comunicação, que passa por exposições temporárias e um bom serviço educativo e que quer chegar a públicos cada vez mais alargados e diversificados.” Na relação entre o museu e os seus visitantes muita coisa mudou, mas não os agentes mediadores. Esses, garante o director do MNAA, continuam a ser os conservadores e a sua investigação, a equipa de cada instituição que estuda a colecção à sua guarda e que a partir dela procura criar várias narrativas capazes de atrair e inquietar.  

Esta “evolução de paradigma”, dá-se no sentido da democratização do acesso ao património. Uma democratização que se faz por dois motivos essenciais: um, porque é por si só um valor; o outro porque ela responde à pressão crescente para que os museus gerem receita. “Hoje não podemos conceber um museu que seja apenas privilégio de um grupo de sacerdotes. Os museus já sabem há muito tempo que precisam de estar debaixo da luz, dos holofotes, se quiserem ser relevantes.”

Lapa está longe de defender um museu fechado sobre si mesmo. Sabe que os directores não podem fugir aos compromissos e às negociações constantes, mas não pode deixar de dizer que em Portugal, “país que só recentemente saiu da inexistência de quase tudo” no que toca à articulação dos museus com os seus congéneres internacionais, ainda existe uma sobreposição de vontades  refere-se aos conselhos de administração ou à tutela – “absolutamente excessiva” nas programações. E como é que ela se manifesta? Na tendência de transformar o museu num instrumento de especulação, através de “exposições que, muitas vezes, abordam as colecções a partir dos seus valores artísticos mais superficiais, mas mais vendáveis, mais comerciais”.

A discussão à volta da vertente comercial e do desvio do foco das colecções para a arquitectura, por exemplo, com o advento dos museus instalados em edifícios-espectáculo, não é nova (o novo Museu dos Coches, por exemplo, receberá certamente muitos visitantes mais interessados no edifício do Pritzker brasileiro Paulo Mendes da Rocha do que na colecção). Começou a ser feita em torno dos blockbusters no final dos anos 1970/80 e intensificou-se na década seguinte, em ensaios de referência como o da crítica de arte Rosalind Krauss (The Late Capitalist Museum, 1990). Pelo meio houve a célebre Documenta de 1972 – a quinta edição da exposição de Kassel – a gerar debate à volta das indústrias culturais.

“A mediação do conhecimento que o museu trava com a comunidade parte da fidelização de públicos, que não se pode basear em fenómenos de bilheteira pontuais. O público de um blockbuster não volta necessariamente para uma exposição mais exigente e complexa.” Sendo que um blockbuster, ressalva Lapa, não é por definição uma má exposição. “Uma exposição que reúna muitos Leonardos vai sempre chamar pessoas. Mas pode ser bem ou mal feita, como todas as exposições.”

É precisamente o mestre da Renascença que atrai os visitantes que, no documentário de Wiseman, enfrentam longas filas ao frio e à chuva para ver Leonardo da Vinci: Painter at the Court of Milan (2011/2012), exposição que, a par de Rembrandt: The Late Works (2014), foi dos maiores blockbusters da National Gallery nos últimos anos.

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A National Gallery de Londres é o quarto museu mais concorrido do mundo: aqui, uma enchente em 2004, quando reuniu o maior número de sempre de obras de Rafael em Raphael: From Urbino to Rome NICOLAS ASFOURI/ AFP
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A exposição que o Museu Nacional do Prado, em Madrid, actualmente dedica ao flamengo Rogier van der Weyden, conciliando poder de sedução e investigação de topo SUSANA VERA/ REUTERS

A abertura a uma franja maior de público, argumenta Pimentel, é uma das condições de sobrevivência dos museus enquanto instituições públicas. E, para a garantir, o museu não tem necessariamente de hipotecar a qualidade nas exposições que têm potencial para atrair mais visitantes. A que o Museu Nacional do Prado, em Madrid, dedica agora ao pintor flamengo Rogier van der Weyden é um exemplo dessa possibilidade de conciliar uma investigação de topo com um enorme poder de sedução: “Constrói conhecimento e ficará para a história de arte. É possível fazer exposições muito relevantes do ponto de vista conceptual tanto para um grande como para um pequeno público.”

António Filipe Pimentel pôs o MNAA a apostar nas chamadas grandes exposições (salvaguardadas as devidas diferenças com os exemplos internacionais atrás mencionados) e, para isso, e por causa de um cenário orçamental que não inclui verbas para a programação nem lhe dá autonomia na gestão da receita que é capaz de gerar, abriu-o aos privados, tendo já organizado várias exposições com produtoras externas, como a da colecção do bibliófilo e editor italiano Franco Maria Ricci. Uma abertura que lhe valeu muitas críticas, mesmo entre directores de outros museus públicos. “Os museus têm de entrar no mercado e isso exige um ponto de equilíbrio entre marketing e investigação, com sensatez. Não me passa pela cabeça vender o [pintor italiano do século XVII/XVIII] Luca Giordano como se fosse pasta de dentes, mas passa-me pela cabeça ‘vendê-lo’ porque tem de passar no âmbito de uma estratégia de abertura do museu.

O museu ainda inquieta?
Pimentel tem procurado contrabalançar exposições feitas em parceria com instituições estrangeiras, como A Paisagem Nórdica do Museu do Prado, com outras de menor dimensão nas salas do torreão ou do tecto pintado, mais voltadas para aspectos particulares da colecção do museu e para a investigação da casa.

Toda a programação deve levar o museu a convidar a entrar, diz o director do MNAA. “Os museus públicos têm uma missão evangelizadora e sem comunicação não chegam às pessoas, falham a sua missão.” E não é possível que caiam na armadilha do excesso de comunicação para a qual alerta Nicholas Penny, o director cessante da National Gallery, no filme de Wiseman? “Comunicar não significa prostituir o equipamento, as colecções. O director da National Gallery parece apontar mais para aquele figurino do conservador-chefe, que não faz qualquer sentido e que, no caso português, conduziu a um apagamento total dos museus da vida das pessoas.”

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O Grande Museu mergulha na colecção dos Habsburgos. O documentário de Johannes Holzhausen acompanha a reabertura das galerias da Câmara das Maravilhas, em 2013, depois de dez anos de trabalhos de renovação. Mas não se esquece dos bastidores DR

Como se deve, então, comportar o director de um museu? “Como um gestor que conhece profundamente o valor estratégico da sua colecção, que conhece a sua equipa. Só assim será capaz de surpreender e de inquietar. Não pode ser o conservador dos conservadores. Isso era há 50 anos.”

É precisamente a capacidade de inquietar que está hoje profundamente comprometida, defende Lapa. Grandes instituições de referência como o Pompidou, de Paris, ou o Guggenheim e o MoMA (Museum of Modern Art), de Nova Iorque, são hoje uma “pálida sombra” do que foram graças a este cenário, exemplifica. Faltam-lhes experimentação, diversidade, e isto porque as exposições temporárias que organizam se apoiam na rotatividade de nomes que são sempre os mesmos, os que garantem boas receitas nas bilheteiras e nas lojas. “As programações estão reféns de uma série restrita de artistas que chamam públicos.”

Divergências à parte, os dois directores alertam para os riscos de se caminhar para um cenário em que a privatização deste tipo de instituições possa vir a ser discutida. “Simplesmente não se pode fazer, sob pena de transformar o Louvre [o museu mais frequentado do mundo, com 9,5 milhões de visitantes no ano passado] na Disneylândia”, adverte Pimentel. Mas, na “paranóia da sustentabilidade”, é justamente da privatização que pode vir o perigo, que pode vir a grande ameaça à permanência dos museus. “O público, e o público crescente, é a maior garantia de segurança do museu como o conhecemos. Restringi-lo é uma ameaça.”

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O Louvre, em Paris, continua imbatível no posto de museu mais frequentado do mundo: 9,5 milhões de visitantes em 2014 JACKY NAEGELEN/ REUTERS

Pedro Lapa sintetiza: “Não vamos iludir as coisas, se queremos museus dedicados ao conhecimento e à mediação desse conhecimento na relação com o público que os visita, o Estado tem de gastar dinheiro. Acreditar que podemos caminhar para uma situação em que os grandes museus públicos podem viver sem Estado é pura ingenuidade.” 

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