Sem ambiguidade não há literatura

O escritor espanhol Javier Cercas está de volta. O autor do magnífico Soldados de Salamina aventurou-se desta vez por uma história de jovens delinquentes nos anos da transição espanhola da ditadura para a democracia. Um romance duro e comovente em que mistura todos os géneros, como num “cocido madrileño”.

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"Os livros não existem sem os leitores. São eles que fazem os livros" Daniel Rocha

“E se eu não tivesse sido um adolescente tímido e pedante, se por algum motivo tivesse cruzado então a fronteira da cidade e me tivesse juntado a um dos muitos bandos de delinquentes que havia naquela época?” Esta foi a pergunta que o escritor espanhol Javier Cercas (n. 1962) se colocou e que serviu de mote à escrita do romance As Leis da Fronteira, recentemente publicado pela Assírio & Alvim.

Javier Cercas passou toda a infância e a adolescência em Girona, e fez dessa cidade, no ano de 1978, o palco do seu novo livro. “Eu era um rapaz da classe média e não sabia o que existia para lá do rio, que era a fronteira do nosso bairro, aquilo era terra incógnita”, contou ao Ípsilon. “Um dia levaram-me ao outro lado do rio, e de repente vi que aí viviam milhares de pessoas, emigrantes como eu [a família mudara-se, por razões económicas, da Extremadura para a Catalunha quando ele tinha 4 anos], que falavam castelhano como eu, não o catalão, e que viviam na miséria. Era um mundo completamente diferente do meu, que estava a 150 metros mas do qual eu não sabia nada. Era como um outro continente, um outro planeta.”

Javier Cercas vivia exactamente no lugar onde vive um dos protagonistas, andaram no mesmo colégio, têm a mesma idade. “Se me perguntar se o romance é autobiográfico, respondo que sim, como o Dom Quixote, como todos os romances, não porque conte a minha vida, mas porque inclui sempre parte da experiência do autor. A ficção pura não existe, só acredita nisso quem não sabe o que é a ficção. Todas as personagens de um livro são o escritor. As personagens são, diz Milan Kundera, “possibilidades não realizadas do próprio autor”. Cervantes é dom Quixote, claro, mas também é Sancho Pança e todos os outros.”

O mito

Foi depois de ter visitado em Barcelona uma exposição sobre o fenómeno dos jovens delinquentes espanhóis dos finais dos anos 1970 e de toda a década de 1980 – os anos da transição da ditadura franquista para a democracia – jovens pobres, sem educação nem esperança, que se organizavam em bandos para traficar e roubar, que Javier Cercas se apercebeu, ao olhar para uma sala cheia de retratos desses rapazes, de que também poderia ter sido um deles. Havia máquinas de flippers, música ambiente da época, toda a sua adolescência estava retratada naquela exposição. “Mas o mais interessante foi que eles se converteram em mitos, os meios de comunicação social converteram-nos em mitos, capturaram a imaginação do país”, conta. “Fizeram-se muitos filmes sobre eles, filmes com muito êxito protagonizados pelos próprios delinquentes. Aquilo transformou-se num mito local, mas ao mesmo tempo era também algo universal, uma variante do mito de Billy the Kid. Foi uma coisa muito intensa, mas muito efémera.”

O mito, é sabido, mistura verdades e mentiras, e o resultado é sempre uma mentira que, de certa maneira, dá voz à sociedade que o criou. Estes rapazes acabavam por simbolizar as esperanças e os medos que se viviam em Espanha nesses anos, de como era vivida a passagem da ditadura para algo que todos desconheciam, a democracia. Com o romance As Leis da Fronteira o autor não ensaia uma desmitificação dos jovens delinquentes, mas tenta ver o que existe de concreto por detrás desse mito. E o que havia? “Nada”, diz Cercas. E cita Bob Dylan, “quem não tem nada, nada tem a perder”.

O romance As Leis da Fronteira centra-se nas relações de três personagens: Zarco, um delinquente que rouba e assalta bancos, Gafitas, o jovem estudante da classe média que se junta ao grupo (e que 40 anos mais tarde, na segunda parte do livro, é um advogado de sucesso que tenta tirar Zarco da prisão), e Tere, a jovem que oscila entre os dois rapazes, misteriosa e bonita. Pode ser lido como uma longa história de amor, dura e romântica, ambígua e contraditória. É a história de um adolescente de classe média que vive na fronteira da cidade, e que a cruza. Descobre que a fronteira não é só física, mas é também moral e simbólica É a fronteira da justiça, das classes sociais, a fronteira entre a adolescência e a vida adulta. A primeira parte do livro evoca o Bildungsroman alemão, o romance de iniciação. O protagonista descobre a vida: o sexo, o amor, a traição e os enganos, a violência e a morte. A segunda parte é a da maturidade, ou aquilo “que se supões ser a maturidade”. Aos 40 e tal anos o passado está de volta e vê-se nele uma possibilidade de salvação. A personagem Gafitas está agora economicamente bem na vida, advogado com sucesso, separou-se da mulher, está só outra vez e pensa que a sua vida talvez tenha sido um equívoco. A vida que leva não é a que queria ter levado, num qualquer momento tomou um caminho errado. O passado regressa na forma da mulher que o fez descobrir o sexo, e volta no momento mais intenso da sua vida. Um passado que ele enterrou, que ele escondeu, mas pensa que é nesse passado que está o equívoco. “É um romance em que toda a gente se engana constantemente”, diz Cercas entre sorrisos. “Como nos enganamos sempre todos na vida.”

Javier Cercas assume a ideia de que o romance é por definição um género de géneros, onde cabe tudo, por isso não espanta que As Leis da Fronteira se pareça de vez em quando com um agitado “thriller” com preocupações existencialistas, um policial negro e duro, um romance de amor ou de iniciação, uma entrevista com preocupações literárias, ou mesmo o esboço de uma biografia. “Não me propus misturar géneros. O romance é uma espécie de ´cocido´, um prato onde cabe tudo. Se por vezes os meus romances parecem “thrillers” existenciais, como diz, é porque há que procurar uma verdade que tem sempre questões morais, existenciais. Por outro lado, são também “anti-thrillers” porque no fim nunca sabemos quem é o assassino.”

A obscuridade que nos ilumina

Pelo menos desde Soldados de Salamina (ASA, 2002) – considerado por muitos como um dos mais importantes romances espanhóis das últimas décadas – que os livros de Cercas interrogam o leitor a partir de um centro que se vai deslocando ao longo da narrativa. As Leis da Fronteira é um bom exemplo dessa deslocação a que o leitor é obrigado: se durante grande parte do romance é a personagem Gafitas que aparenta carregar todo o peso da narrativa, a partir de determinada altura, e sem que nada mude na arquitectura do enredo, o leitor começa a interrogar-se se não é a rapariga (já mulher, na segunda parte), Tere, quem manobra todas as outras personagens, quem no fundo conduz o romance e é o seu centro. Toda a rede de relações anda à sua volta, ela é a esfinge. Mas Tere é também a que incorpora os dilemas morais do romance, uma personagem trágica. No coração do livro parece haver sempre uma pergunta, e toda a narração mais não é do que um caminho para encontrar a resposta. E no fim do caminho qual é a resposta?

“A resposta é a própria busca, é o próprio livro. Não há uma resposta clara, unívoca. Há respostas sempre ambíguas, contraditórias, e essencialmente irónicas”, confirma Cercas. “O Dom Quixote também funciona assim. É o modelo de todos os romances. A pergunta é se dom Quixote está louco ou não? Todo o livro é uma tentativa de averiguação e no fim acabamos por não saber. É essa obscuridade que nos ilumina, é esse silêncio que torna o romance eloquente. Outro exemplo: em Moby Dick quem é a baleia branca? Porque é que o capitão Ahab está tão obsecado com ela? É o bem? É o mal? É Deus? É o diabo? As respostas não as sabemos. Os meus romances são também assim. Em Soldados de Salamina a pergunta é: porque é que um soldado republicano salva a vida a um fascista em vez de o matar no fuzilamento? E no final não há resposta. A resposta é o próprio livro.”

Os romances não se escrevem para dar respostas, escrevem-se para as fazer da maneira mais complexa possível, parece ser esta a mensagem que Javier Cercas quer deixar aos seus leitores. Daí a importância da ambiguidade no enredo romanesco? “Sem ambiguidade não há literatura. A ambiguidade deve estar no centro do romance.” E por que é fundamental a ambiguidade, a ironia? “Porque esse é o espaço que o escritor oferece ao leitor para que este converta o livro no seu próprio livro. Os livros não existem sem os leitores. São eles que fazem os livros.”

Cada novo livro de Javier Cercas não se parece em nada com nenhum dos anteriores. A tentação de muitos escritores, sobretudo quando corre bem um livro, é repetir a forma, talvez só um pouco alterada. Ou mesmo prosseguir no assunto ou no registo de estilo. Mas há ideias que preocupam um autor e que ele explora uma e outra vez. Como é que Cercas lida com isto? “A ideia de escrever sempre o mesmo livro dá-me medo. De tal maneira que às vezes penso que cada livro que escrevo é o contrário do anterior, que é uma tentativa de o completar. Se um livro é diferente, a maneira de formular a questão tem de ser a mais diferente possível. García Márquez nunca escreveu duas vezes Cem Anos de Solidão, não lhe teria sido difícil. Acabei agora de escrever um livro. Há quem me diga que é o melhor que escrevi. Outros dizem-me que é o melhor que escreverei, o que me preocupa muito (risos).”

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