Se um dia um viajante mudar o que somos

O que pode um viajante? Pode ser a pergunta base de um livro que é uma referência para quem o leu. Quase 80 anos após a sua publicação é editado em Portugal e mantém-se essencial para tentar entender o presente

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Robert Byron morreu aos 36 anos DR

Há uma frase de Robert Byron, poucas páginas depois do início deste livro que tem inspirado escritores e viajantes em todo o mundo ao longo de décadas, quase perfeita para definir o conflito interior de quem viaja perante o efeito do desconhecido com que se depara: “Fingir distanciamento releva arrogância; fingir reverência, hipocrisia.” Como encontrar o ponto de equilíbrio quando se entra num mundo onde o espanto, a surpresa, o desalento ou o êxtase estão sempre a desafiar (e é isso que o viajante procura) o lugar-comum, o estereótipo, a modorra, o domínio das emoções? O relato da viagem entre Veneza e o vale do rio que a antiguidade chamou Oxus e que é hoje conhecido como Amudária, no Nordeste do que foi a Pérsia, é, no mínimo, uma aprendizagem acerca dessa condição de viajante, alguém com todos os sentidos alerta, mas é também uma das mais belas provas de como essa experiência pode ser passada para a escrita e manter-se um retrato actual dos territórios que são hoje o Chipre, Israel, Palestina, Síria, Irão, Iraque ou Afeganistão. Em A Estrada para Oxiana, publicado pela primeira vez em 1937, o aristocrata inglês desistente de Oxford, Robert Byron, criou um livro que continua a ser referência pelo modo como faz da experiência de viagem literatura.

No prefácio à primeira tradução da obra para português, agora publicada pela Tinta-da-China, a jornalista e escritora Alexandra Lucas Coelho enumera muitas das qualidades deste livro de extrema sabedoria e a sua capacidade e seduzir tantos anos depois. Além das suas, estão lá as afirmações de Bruce Chatwin, que considerava este “um livro sagrado, além de toda a crítica”, do historiador americano Paul Fussell que, sobre este A Estrada Para Oxiana, disse estar “para a literatura de viagens como Ulisses para o romance de entre-guerras e Terra Devastada para a poesia”, ou capaz de mudar uma vida como sugeriu também o historiador William Dalrymple. Uma conduta breve por vários sites e percebe-se a reverência de quem o leu. Mas A Estrada para Oxiana nunca foi um best-seller. Passaram quase oito décadas desde a sua publicação e o estranho é que perante este livro seja ainda preciso recorrer à espécie de legitimação conferida por opiniões como estas para tentar conquistar o leitor, convencê-lo de que este é um dos livros que não convém mesmo perder. Essas frases, comparações com grandes obras da literatura pelo seu carácter inovador e pela capacidade de resistir a isso, parecem essenciais de cada vez que o livro é traduzido ou reeditado. Portugal não é excepção. Mas a prova está mesmo na leitura.

Tudo, excepto o traçado das fronteiras e as alterações causadas pelos conflitos permanentes no Médio Oriente, se mantém actual em A Estrada para Oxiana. A escrita clara, a erudição, a ironia, a sagacidade, a observação de um lugar que persiste como um dos mais complexos (e como tal incompreendido). “Aqui o Oriente encontra-se na sua prístina confusão”, escreve Byron sobre o seu acordar em Damasco, num percurso que já passara pela Grécia, pelo Chipre e pela Palestina e que o leitor actual já mais do que intui, ainda com muitos mais quilómetros para percorrer, como fundamento para um texto civilizacional. O presente de Byron é pontuado por factos históricos contextualizados por uma enorme capacidade de confrontar não apenas as mudanças que se operam naquele ponto do globo, mas também o nacionalismo então crescente na Europa e uma crítica à colonização inglesa. O olho apurado perante arquitectura como grande guardiã de memória colectiva — pelo que há de construção, preservação, ausência ou destruição — é uma das grandes marcas deste livro onde não faltam imaginação e invenção (em muitos diálogos que não se passam em inglês, como foi já muitas vezes referido em recensões criticas e textos biográficos) em nome da alegria de escrita, mas sem comprometer, antes sublinhando, a “verdade”.

A experiência é pessoal, mas a cada passo o leitor é um cúmplice, tal a ilusão da partilha desse espaço e tempo que o escritor descreve como se num documentário, com recursos do drama, da comédia, de uma aventura onde a paisagem não se descola do humano e do seu legado. Robert Byron tinha 28 anos em Agosto de 1933, quando deixou Veneza acompanhado pelo amigo Christopher Sykes no rasto da torre funerária de Gonbad-e Qabus, no Nordeste da Pérsia. Conta que pesou todos os superlativos comuns a viajantes e ainda assim não hesitou em considerar a torre “um dos edifícios mais grandiosos do mundo”.

Construída no século XII, era um dos símbolos do “génio” da PérsiaM possível de avistar pelos nómadas do mar da Ásia Central. As primeiras linhas são exemplares quanto à excentricidade dos viajantes. O política ou diplomaticamente correcto não é o jargão pelo qual se rege Robert, o escritor da dupla. Mas esta não é uma paródia, apesar de haver muitos momentos de quase delírio. De Veneza à actual fronteira entre o Afeganistão e a Rússia onde se situava o rio então conhecido como Oxus com a emblemática torre de Gonbad-e Qabus, há um mapa onde todos nos tentamos situar. O riso de Robert, mas também as suas irritações, o deslumbramento e a incompreensão, é nosso. E também a certeza da incapacidade de abarcar o todo; ou, como ele formula: como pode a observação enriquecer o espírito humano? Essa foi verdadeiramente a sua busca. “Quem me dera ser rico para poder atribuir um prémio ao viajante mais consciente: dez mil libras para o primeiro homem a refazer a viagem de ida e volta de Marco Polo, lendo três livros novos por semana, e outras dez mil se também bebesse uma garrafa de vinho por dia. Um tal homem (...) poderia ou não ser naturalmente observador. Mas, pelo menos, usaria os seus próprios olhos e não acharia necessário embelezar o resultado com histórias emocionantes que nunca aconteceram, nem com uma ciência que não vai além da gíria.”

A viagem de Robert Byron terminou 11 meses depois, em Julho de 1934. Ao longo do livro eram notórias as suas posições sobre o nacionalismo, qualquer que fosse. Quando rebentou a Segunda Guerra Mundial, ele sabia o seu lugar. Alistou-se nas tropas aliadas. Em 1941 ia a caminho do Egipto quando o barco onde seguia foi atingido ao largo da Escócia. Morreu aos 36 anos.

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