Se os ministros morassem no musseque

O poeta angolano José Luís Mendonça estreia-se na prosa aos 58 anos com um romance que inventa uma nova sociedade com a lucidez da loucura. África, argumenta, "tem de ser diferente".

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José Luís Mendonça inspirou-se em personagens de Luanda, que anda há anos a observar MIGUEL MANSO
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O Reino das Casuarinas inclui desenhos das várias personagens do romance: o Primitivo
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O Reino das Casuarinas inclui desenhos das várias personagens do romance: o Profeta
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O Reino das Casuarinas inclui desenhos das várias personagens do romance: o Gato Stravinsky

Ao invés de derivar para a literatura, esta conversa com José Luís Mendonça acaba por se meter nas vielas da política, muito por culpa deste primeiro romance do poeta angolano. O Reino das Casuarinas é um livro político, ingenuamente político na sua invenção de uma sociedade nova, na ilha de Luanda, do outro lado da baía luandense, à sombra dessas árvores cujos ramos esbeltos tombam delicadamente como protecção natural. Uma sociedade igualitária feita pelos loucos que povoam as ruas da cidade e que o poeta foi observando e acabou por resgatar, dando-lhes dimensão mítica, com asas, com citações de Cícero, com eleições directas, com sentido agudo da realidade. Gente marcada pela guerra, até nos próprios nomes – essa característica que veio da luta anticolonial em que todos se baptizavam ao pegar nas armas.

O narrador tem nome de guerra, Nkuku, como o pássaro que perde as penas na mata mas ninguém consegue encontrar; pelo contrário, o escritor, apesar de admitir que o narrador tem “um terço” dele, nunca o teve: “Como não consegui arranjar nenhum, fiquei sempre o Mendonça.”

Reconhecido poeta, actual director do Jornal de Cultura, assessor de imprensa da UNICEF em Angola durante 15 anos, aproveitou os dois que passou em Paris como adido de imprensa da Embaixada de Angola (2010-2012) para escrever este livro em que em determinadas alturas a poesia irrompe por necessidade de um escritor que é e sempre será um poeta. Em outras, a prosa, por insistência de um rigor literariamente estéril, desinflama-se e perde fulgor.

Em 1998, criou um programa de leitura para as escolas em Angola. O que aconteceu? Que frutos deu?

O meu programa Ler é Crescer funcionou dois anos, no segundo já deficiente, no terceiro morreu. Os professores não quiseram.

Em que consistia?

Aquilo não tinha segredo nenhum e precisava de um mínimo de organização: arranjar livros de autores angolanos, principalmente romances, para os alunos conhecerem o funcionamento da língua. É uma coisa tão fácil mas não dá dinheiro e então ninguém quer. Não há nenhum projecto em Angola que não dê dinheiro, era só eu, que sou maluco.

O único valor é o dinheiro?

Viemos de uma guerra que é a violação de todos os valores humanos – matou-se, violou-se, trucidou-se – com uma consciência vazia de valores. Angola é um país independente só há (quase) 40 anos e não se pode dar ao luxo de viver como um país europeu, onde as instituições estão consolidadas. Mesmo ao nível político, não estou de acordo com o que se está a fazer. Estamos a copiar o Ocidente: o sufrágio universal, as eleições, a democracia, quando sabemos muito bem que nos EUA e no Ocidente a democracia é para eleger sempre os mesmos. Essa democracia nós não queremos cá, porque os outros nunca participam na tal democracia dos ricos.

Que é a ideia que o narrador propõe neste livro.

A proposta deste personagem, o Nkuko, é "se os ministros morassem no musseque". Criar um regime africano, que não tem nada a ver com a alta política, nem com os partidos. A África tem de ser diferente. Temos de despartidarizar a administração pública.

Isso não é a democracia participativa?

Eu não lhe chamo democracia, porque quando se fala em democracia já se está a remeter para a política. Era uma coisa sem política, de gerir a árvore, a rua, as casas.

Mas isso é a política na sua essência, a intervenção na polis, a gestão do espaço público.

Mas que fosse despartidarizada, porque assim que entram os políticos já amarra. Se fossem só os cidadãos conscientes do município: um mais velho, um intelectual, um jovem desempregado, umas dez ou 12 pessoas, um grupo que pudesse ajudar o administrador municipal a resolver as coisas. Os problemas não estão no centro, não estão na Cidade Alta, onde mora o presidente, os problemas estão no município.

Para quem quer tirar a política da equação, aquilo que está a defender é uma proposta política...

Na verdade, é. É uma proposta de intervenção política. Eu só queria tirar a conotação partidária. Tenho um problema que é ser poeta e os poetas não dão para a política.

O primeiro Presidente de Angola, Agostinho Neto, era poeta.

Mas quando assumiu a direcção do MPLA nunca mais escreveu poesia, só escreveu o Sagrada Esperança e tinha os poemas de A Renúncia Impossível, que estavam guardados e se publicaram depois de ele morrer. Não dava para publicar antes, porque são poemas livres em que ele fala até de que devemos livrar-nos das ideologias, quer do capitalismo, quer do socialismo, e ser nós mesmos.

A sua paixão pela poesia e pela literatura levou a que tivesse uma vida mais de bastidores, apesar de ser militante do MPLA?

E que não tivesse bens materiais, conforme os outros intelectuais da minha geração têm. Para se ter uma certa riqueza em África é preciso entrar na política activa. Se não se é do partido, é difícil ter acesso aos bens.

O jornalismo é apenas o trabalho que faz porque tem de ganhar dinheiro ou encara-o como outra faceta da sua escrita?

O jornalismo, para mim, está muito ligado à literatura. Sempre que escrevo, faço-o com uma certa grandeza estética. É uma paixão que vem já dos tempos do liceu, o primeiro texto que escrevi foi uma crónica para o jornal O Estudante. Nunca estudei jornalismo no ensino superior, só fiz um estágio na Angop [agência de notícias angolana], mas de tanto ler jornais e revistas aprendi a fazer jornalismo.

Consegue escrever para os jornais com a mesma paixão com que escreve poesia?

É isso que faço. Não posso publicar nenhum artigo que não seja bem trabalhado. Tenho de fazer várias versões, principalmente agora que estou no jornalismo cultural.

Embora haja neste livro rasgos de poesia e de fantasia, há como que uma busca, através de várias técnicas narrativas, de rigor na forma como descreve estas personagens no seu contexto da História de Angola.

Todas estas técnicas são resultado de várias leituras, principalmente do Memorial do Convento, do José Saramago, e do livro que li em Paris, La délicatesse, do David Foenkinos. Mas acrescentei outras técnicas, do Norman Mailer de Os Nus e os Mortos, e de muitos outros autores americanos e africanos, além da minha própria criatividade. Este livro parece quase um ensaio sobre a sobrevivência individual e colectiva. Tem muitos extractos, inclusivamente do livro As Três Sereias, do Irving Wallace, que eu amo. Sempre procurei algo que identificasse o meu estilo e penso que o consegui neste livro.

E demorou dois anos a escrever?

De 2010 a 2012 mas ele já existia em forma de conto, só com duas páginas.

Quando é que o escreveu?

Em 1983.

E já tinha algumas das personagens?

A Casa de Orates, a casa dos malucos, tinha quatro personagens que estão neste romance. Juntei mais três, que são personalidades da urbe de Luanda, são os malucos que andam por lá. Um deles era meu amigo, por isso conheço a história.

Qual é?

O Primitivo.

Também foi seu amigo na tropa, como o narrador?

Foi. O PAM conheci-o na rua, vestido com borracha; a senhora careca [Eutanásia] também a vi andar por lá; o Kachimbamba existia ali, junto à maternidade de Luanda, arrastava-se pelo chão, cheio de óleo. São figuras que eu fui observando durante anos.

Quanto do José Luís Mendonça há no narrador?

Vamos dizer um terço. Eu nunca fui à Alemanha [o narrador estudou na Alemanha Oriental]. Aquelas teorias que ele apresenta são minhas. Se o ministro morasse no musseque é uma coisa que até publiquei num jornal.

E o nome de guerra, Nkuku, também era o seu?

Como não tinha feito a guerrilha, não sabia que todos tinham nome de guerra. Como não consegui arranjar nenhum, fiquei sempre o Mendonça.

O livro acaba com desenhos seus dos personagens, porque decidiu incluí-los?

Quando andava na primária, a minha professora, que foi a minha iniciadora na literatura, ofereceu-me um livro, Os Cinco na Casa em Ruínas, de Enid Blyton, e esse livro tinha seis ou sete imagens. Como foi o primeiro que li na minha vida quis que este também tivesse desenhos.

Quando decidiu que queria escrever?

Foi quando li o livro de R. M. Ballantyne, A Ilha de Coral – fiquei deslumbrado.

Que importância teve o seu pai na sua formação?

O meu pai teve a importância de me incutir o gosto pela leitura. Era um comerciante português e tinha alguns livros, uns 15 ou 20 que havia levado de Portugal, sempre guardados num baú de couro. De vez em quando, tirava alguns, punha-os na mesa e ia lendo. Também lia sempre o jornal, o Província de Angola.

O seu pai de onde era?

De Alhais, Vila Nova de Paiva. Foi para Angola como funcionário do Estado, andou muito pelas províncias. Nós só nascemos quando ele já estava nos quarentas e decidiu começar a fazer filhos. Não sei por que carga de água foi exonerado, acho que por dizer mal do Salazar.

Apesar de este ser um livro de prosa, a poesia irrompe em frases, em citações e também num poema do David Mestre, que foi um mestre para si.

Este poema, O Bravo Sandokan, até serviu para uma dissertação que fiz no Senegal sobre "a poesia e o direito de viver", que é a questão de que ele fala: "quantos tiveram de/ tombar/ para que fosse/ teu o seu instante".

Num país novo como Angola, onde a maioria da população tem menos de 40 anos, essa consciência da guerra, daqueles que sacrificaram o seu instante, parece não existir?

Há realmente uma falta de consciência. Nem temos um manual de História feito por angolanos. Pouca gente sabe sequer como decorreu a luta contra a escravatura, a luta de libertação. E, depois, como não se lê no país, ainda pior. As pessoas nascem, vêem um país a crescer e fazem coisas erradas, como as revoltas dos jovens, por falta de divulgação, de informação histórica.

Mas acha que as manifestações dos jovens em Luanda não são justificadas?

As manifestações até podem ser justificadas, está na Constituição, é um direito; agora, existe no meio dessas manifestações um aproveitamento de figuras do passado que nunca foram heróis. O Nito Alves não foi herói, nem vítima, foi o culpado. E agora está a aparecer como um santo.

Tinha os livros do Nito Alves?

Tinha.

E destruiu os livros, como o narrador do livro?

Claro. Mal houve a intentona, peguei naqueles livros e queimei-os, para não ter qualquer conotação.

Já os tinha lido?

Só o de poesia, o outro, as 13 Teses em Minha Defesa, era muito difícil, eu pegava nele e não sabia o que o homem queria dizer. A poesia era muito prosaica, não tinha trabalho oficinal. Li três ou quatro poemas e não encontrei qualidade literária. Mas eu gosto de guardar tudo, só os queimei porque depois houve revistas casa a casa.

Voltando às manifestações de jovens em Luanda contra o regime. Tal como o pensamento anticolonialista nasceu nos musseques, não será nos musseques que está agora a surgir um pensamento contra o regime?

O Pepetela, muito antes de acontecer esta revolta, já falava disso, ainda no tempo do monopartidarismo. Como também falava o Manuel Rui. Essa consciência já existe há muito tempo.

Foi para este país que tantos perderam o seu instante, citando David Mestre?

Nós lutámos, talvez, para metade do país que existe hoje.

Que metade é essa?

Temos uma nacionalidade, somos uma nação; temos um país onde há livre circulação de pessoas e bens; estamos a construir o país nós mesmos; temos já quadros formados; temos uma certa liberdade de expressão, até já podemos falar mal do Presidente. Eu não seria o escritor que sou se não houvesse independência.

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