Se Amália lá estivesse teria aplaudido

Amélia Muge prestou a Amália Rodrigues, na Culturgest, a mais bela das homenagens de fora do fado. Se Amália lá estivesse teria aplaudido, com a alma inquieta de uma “filha das ervas”

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Amélia Muge numa das imagens criadas para o disco "Amélia com versos de Amália" Egle Bazaraite

O espectáculo Amélia com versos de Amália, estreado no Grande Auditório da Culturgest na noite de 23 de Janeiro, mostrou que se mil e um fadistas já cantaram Amália, e alguns de forma sublime, só Amélia Muge poderia tê-la cantado assim. E Amália teria gostado e aplaudido, como no passado aplaudiu outros não-fadistas que a cantaram, de António Variações a Caetano Veloso.

Quem esperava uma “reprodução” literal do disco, enganou-se. No palco, perante uma plateia confortável (com mais de três quartos dos lugares ocupados), Amélia realinhou os temas de modo a acentuar-lhes os significados. E as soluções musicais e plásticas anunciadas funcionaram da melhor forma, com as palavras de Amália, desenhadas por Amélia em múltiplos arabescos, a invadirem tudo, projectadas no fundo, no topo e até na base do palco de modo a criarem uma moldura constante, como se a música nascesse (e nasceu) dessa dança inquieta das palavras.

Aliás, foi com palavras que o espectáculo começou: “Cheia de penas/ cheia de penas me deito…” Amélia a dizer a Lágrima de Amália, traída aqui e ali pelo microfone, ainda pouco domado às exigências da voz. A música veio depois, nesta primeira fase com a marca (nos arranjos, ainda que adaptados ao palco) indelével de José Mário Branco: A lua, Tenho dois corações e Ai de mim que me perdi – e, neste último, Amélia perdeu-se mesmo, num canto demasiado “explicativo”.

Nada que não tivesse rápida cura. A escolha de Macelada, um tema tradicional da Beira Baixa (ascendência de Amália por via dos avós maternos), para abrir caminho a Sou filha das ervas (aqui numa interpretação excelente), foi jogada certeira. E não foi Amélia, com idêntico pretexto telúrico, que musicou e tão bem cantou Ervas de cheiro, de Grabato Dias, no seu disco de estreia Múgica, em 1992? E quem fala em ervas fala dos seus habitantes naturais, essa vasta lista de bichinhos do campo que suscitava em Amália as observações mais insólitas e divertidas. Por isso, foi também muito adequada a trilogia de temas seguinte, cantados sem interrupção entre eles, todos com arranjos de José Martins e a lembrarem as sonoridades exploratórias de Amélia Muge em Taco a Taco (1998): O bicho de conta, 335 gafanhotos e O mosquito mordeu-me no olho.

Quadras soltas, com Amélia na braguesa, fez uma bem calculada transição dos divertimentos campestres à lírica de Os teus lindos olhos pretos e O tempo dantes corria, ambos com música do cantor e compositor grego Michales Loukovikas, parceiro de Amélia em Periplus, mantendo o segundo, em palco, a sonoridade orientalizante que tão bem o caracterizou no disco. E se, em termos musicais e vocais, a atmosfera era já de encanto, o final foi antológico, com Amélia (e Amália, por via dela) a voar ainda mais alto: Meu coração sem direito, Eu vivo a vida perdida e Carta a Vitorino Nemésio. Isto antes da surpresa da noite (que deixou de o ser mal o público teve nas mãos o habitual caderninho de sala que é já uma tradição da Culturgest): uma interpretação ameliana de Lágrima, voz e braguesa, transposto do fado para o universo da melhor música popular portuguesa. Vidas musicais paralelas para um poema emocionalmente eterno.

Antes, Amélia apresentara os músicos, que iam deixando o palco um a um, até ela ficar sozinha: Daniel Salomé (sopros), Catarina Anacleto (violoncelo), Manuel Maio (violino, bandolim e voz), António Pinto (guitarras) e Ivo Costa (percussão), que foram a equipa-base em palco, além dos convidados António Quintino (contrabaixo) e Carisa Marcelino (acordeão). Uma equipa que conseguiu manter, do princípio ao fim, uma coesão musical digna de nota no espectáculo. Tal como o fizeram José Martins (nos múltiplos sons adicionais) e Manuel Mendonça (num trabalho notável de luzes e projecções, que Egle Bazaraite manipulou em tempo real a partir de um titânico trabalho de Amélia, que fez mais de uma centena de pranchas com desenhos e letras).

Por fim, Faz-me pena (música de Amélia e arranjos de José Mário Branco) foi, como no disco, o mais acertado final. “Sinto que cheguei ao fim/ Das ilusões que não tive/ Porque alguém gosta de mim/ Algo de mim sobrevive.” Palavras de Amália, prova do muito que dela ainda há em nós.

Após os aplausos que encorajaram o encore, ouviram-se finalmente os únicos dois temas que até aí tinham ficado de fora do alinhamento (completando, desse modo, a apresentação integral do disco): Quero cantar para a lua, com arranjo de José Mário Branco, e Tenho uma cabra cabrita, com arranjo de José Martins, exemplificando, cada um deles, uma face da criação “desta Amália tão diversa”, como lhe chamou Amélia a dado momento do espectáculo. Uma Amália que tanto olhava e interrogava as fatalidades do destino como gracejava com os bichinhos do campo.

Sim, é porque tantos gostam de Amália que muito (e não apenas “algo”) dela sobrevive. Amélia Muge compreendeu-o bem e, ao seguir apaixonadamente a sugestão de Manuela de Freitas que deu origem a este trabalho, prestou a Amália, com o seu canto, uma bela homenagem.

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