Sátira e violência

Papá em África, de Anton Kannemeye, ajusta contas com a banda desenhada e com a África do Sul. E arrasta o leitor consigo.

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Papá em África, de Anton Kannemeyer (Cidade do Cabo, 1967) é um livro mal-educado, tal a acidez, o medo e a violência que o agitam. E é um livro de BD.

A capa levará muitos leitores ao engano. Ao longe ou num simples relance, parece um pastiche de Tintin no Congo, de Hergé, ou (quem diria?) uma obra perdida, maldita do autor belga. Mas basta tomá-lo na mãos para a ilusão cair. Como é óbvio, haverá leitores que intuirão um detournement (a capa tem pistas suficientes) mas nem eles serão poupados à ferocidade desapiedada (por vezes desorientada) das histórias e das imagens de Papá em África.

Recolhidas da publicação Bittercomix, título fundamental da BD sul-africana, que Kannemeyer fundou em 1992 com Conrad Botes, surgem em formatos e estilos diversos. Há realismo, apropriação, autobiografia, imagens autónomas que formam cartazes, os contornos, as formas do “tipo de desenho” baptizado de ligne claire. E como um fantasma, a máscara que assombra (quase) todo o livro, eis Tintim, agora envelhecido, com careca de homem. Algumas das pranchas do livro de Hergé são, aliás, redesenhadas pelo autor com óbvios fins satíricos: a personagem não dispara repetidamente sobre um antílope teimoso, antes de descobrir que, afinal, abateu um número incontável de animais, mas sobre um africano negro; e depois de curar o membro de uma tribo, não sai, discreto (ainda que orgulhoso), de cena, mas cobra o serviço, prostituindo a mulher daquele que salvou.

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Estas estratégias não serão as mais subtis, mas acertam nos alvos: o colonialismo e, sobretudo, a sociedade e a cultura afrikaner em que Kannemeyer cresceu. É com o seu passado, com a sua História, que o autor ajusta contas, sem sacrificar o seu didactismo irónico: leiam-se Preto e Die Tall, em que o afrikaans é apresentado como língua da violência e do racismo, e a história curta Sonny: o abuso sexual é a metáfora de outros abusos.

Kennemeyer não perdoa a sociedade afrikaner como Thomas Bernhard não perdoava a austríaca. Os tabus, os traumas, os medos atravessa, na condição de protagonistas, 1974 (o pesadelo não cessa depois acordar) ou Cucu. Mas na sua violência, nos seus excessos, o livro escorrega para sentidos e a leituras que contrariam as intenções do autor. Quando recorre à iconografia de Hergé para desenhar fisionomia de todos os negros (Coco, o menino africano de Tintin no Congo, é o outro signo deste livro), os riscos são evidentes; aceita-se a vontade de fustigar os leitores, mas o terreno fica livre para interpretações contaminadas pela racismo e o preconceito.

É um risco que o autor continua a correr, mesmo depois de atrair a curiosidade de grupos de extrema-direita (têm solicitado entrevistas). Pode até dizer-se que esse é o objectivo: recuperar a perversidade de um imaginário e de uma linguagem para mostrar o quanto dela ainda persiste na cultura e nos indivíduos. Como efeitos previsíveis: nos últimos anos, aos aplausos sucederam-se as acusações, o desconforto. Na África do Sul pós-apartheid, as séries da Bittercomix (já) são consideradas provocatórias, chocantes, racistas, mas Kannemeyer deleita-se na ambiguidade: “leiam o que quiserem, como quiserem”, é o que parece segredar na vinheta da mulher que está prestes a ser violada ou na ilustração “C de Culpa”.

Os novos poderes (políticos) da África do Sul, a sedução do capitalismo global são visados e sem misericórdia. A violência, a corrupção, a repetição de erros históricos esfregam-se na cara do leitor, não há redenção, apenas a constatação de que o homem continua a flagelar-se a si mesmo e aos outros. É essa realidade que Kannemeyer nos devolve na corda bamba, entre o uso da caricatura e o registo mais realista, mais seco que caracteriza a melhor e a mais complexa banda desenhada do livro: A Corredora: aqui, a vítima e o algoz, se não se confundem, habitam o mesmo mundo: absurdo e injusto. Sem fim.

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