Salvar o corpo

Há muito tempo, em São Brás de Alportel, uma dona-de-casa e um engenheiro foram também escultores. O seu trabalho está-nos, por agora, vedado. A não ser através de um novo projecto de Luísa Ferreira.

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Uma performance da artista Luanna Jimenez deu vida a uma das esculturas de Rosalina Passos, representando uma mulher com bioco (peça do trajo feminino algarvio) LUÍSA FERREIRA
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A exposição está também nas paredes da vila de São Brás de Alportel LUÍSA FERREIRA
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A neta de Rosalina Passos abriu a sua própria casa para mostrar o espólio da avó LUÍSA FERREIRA
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A neta de Rosalina Passos abriu a sua própria casa para mostrar o espólio da avó LUÍSA FERREIRA
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São Brás de Alportel pode finalmente conhecer as esculturas que durante décadas estiveram fechadas num armazém LUÍSA FERREIRA

O termómetro marca 38 graus. As casas de São Brás de Alportel, caiadas de fresco, ainda exibem os restos da antiga riqueza. Graça Passos, que nos acolhe nesta visita, conta que em tempos a vila era suficientemente rica para ter cinco farmácias. Hoje, anseia pelo turismo que não tem. Na encosta sul da serra, a poucos quilómetros de Faro, preserva ainda os sinais dessa antiga abundância que lhe vinha da cortiça boa que existia neste lugar. Conta-se, no Alentejo, que era vulgar ainda em meados do século XX vender cortiça para as fábricas de São Brás.

Tudo isso já lá vai. Incêndios florestais e cotações em queda ensimesmaram a vila dentro de portas. Ouvem-se os gritos das crianças numa piscina de jardim, e um carro da GNR mostra-se, parado à sombra, esperando não ter de sair dali. De resto, é o branco quase total.

No centro histórico, aqui e ali, há impressões em grande formato de fotografias. Luísa Ferreira, a autora, documentou o espólio escultórico de dois antepassados de Graça Passos que aqui trabalharam até meados do século passado. Nessas fotografias, há figuras de barro apenas seco que, amontoadas num armazém, se esboroam com a passagem do tempo. Uma criança, um estudante de Coimbra com a sua capa, restos de um presépio, rostos, muitos rostos. As esculturas denunciam talento, um talento que, por vezes, se acopla com a escuridão expressionista do sofrimento. Graça Passos conta que os autores, Rosalina Passos (1880-1958) e Joaquim Passos (1917-1980), filho da primeira, não eram artistas de formação, mas por razões diversas acabaram por se dedicar à escultura. O espólio esteve fechado num armazém. "As pessoas da terra passavam, espreitavam pela fechadura e chegavam a dizer que havia ali fantasmas.” Foi nesse armazém que Luísa Ferreira o fotografou.

Para além das paredes da vila, a exposição decorre também em dois outros lugares: na própria casa de Graça Passos e no Museu do Trajo do Algarve. É neste último, uma moradia vistosa que em tempos foi casa burguesa de família abastada, depois propriedade da Misericórdia, e por fim agência bancária, que o talento da fotógrafa melhor se revela; há sobretudo uma galeria de rostos, dispostos verticalmente numa parede de sala, que nos interpelam na figuração muda do instante captado. Há muito em comum entre a fotografia e esta escultura: o gosto pelo instante significante – na obra de Rosalina, sobretudo, mas também em certa medida na do seu filho –, e esse interesse pelo retrato que, antes de a fotografia existir, foi apanágio da escultura e da pintura. Depois, há outros elementos que são exclusivos da fotografia, e que Luísa Ferreira não quis elidir: a passagem do tempo, o desaparecimento da escultura, a ruína do armazém que lhe serve de lugar de conservação, a morte, enfim.

Com uma actividade que integra a fotografia de reportagem (fez parte da equipa de fotojornalistas da fundação do PÚBLICO e trabalhou mais tarde na Associated Press), o ensino e projectos de arte contemporânea a partir da sua obra fotográfica, Luísa Ferreira conta que este trabalho foi realizado em 1992. “Na altura, a Graça Passos convidou-me para fotografar este espólio, que se estava a desfazer.” Por razões diversas, entre as quais se inclui o custo da impressão das peças, só agora pode apresentá-las. Mais tarde, virá um livro e, quem sabe, o estudo das peças por um historiador da arte. Por enquanto, este é o único meio que temos para aceder à escultura: o da reprodução em suporte fotográfico do estado em que as obras estiveram depois de meio século guardadas.

A única escultura a que temos acesso está no Museu do Trajo. Trata-se de um pequeno gesso de Rosalina representando uma mulher de bioco. O bioco, uma peça do trajo feminino algarvio antigo, era uma espécie de capa que podia ser transformada em capuz, permitindo à sua portadora sair à rua sem ser acompanhada nem identificada. No dia da inauguração da exposição, houve uma performance da artista Luanna Jimenez que vestia esta indumentária, dando assim expressão ao título genérico da exposição, À procura de um outro corpo: ao esconder e proteger o corpo que o vestia, o bioco permitia também a incorporação de uma máscara, de uma persona, tanto em quem via, como em quem era visto.

 

Uma espécie de arqueologia

Na casa de Graça Passos, que se desenvolve em corredor comprido e fresco entre as ruas Gago Coutinho e Teófilo Braga, as fotografias de Luísa Ferreira encontram um espaço que foi outrora usado pelos dois escultores. “Esta casa era uma antiga farmácia, a farmácia dos meus avós [Rosalina e o marido, pais de Joaquim]. Herdei-a há algum tempo e decidi fazer aqui um lugar onde, além de viver, também se pudesse mostrar arte.” A residência, que mantém intactas as pinturas murais de esponjados e marmoreados habituais nas habitações de posses de princípios do século XX, possui também as condições necessárias para mostrar fotografia. Há até uma sala com uma grande mesa onde estão dispostos catálogos e textos sobre a obra de Luísa Ferreira para folhear depois de, nas salas e nos quartos, termos visto com atenção as imagens expostas.

Estranhamos a generosidade que leva um casal com um filho jovem adulto a abrir as portas de sua casa a estranhos, todos os dias, das 10h às 13h e das 14h às 17h (excepto aos fins-de-semana, em que só abrem à tarde tarde). “Cumprimos o horário do museu. As pessoas vêm, batem à porta do nº 53 da Rua Gago Coutinho e entram. Temos tido visitantes.” Na realidade, Graça Passos retoma aqui uma atitude que já foi a sua nos tempos do CENTA, o Centro de Estudos de Novas Tendências Artísticas que funcionou na Tapada da Tojeira, perto de Vila Velha de Ródão, entre 1989 e 2008 – um espaço interdisciplinar vocacionado para acolher residências artísticas, com espectáculos e exposições montados no próprio espaço. Recordamos a Variante à Estrada Nacional nº 1, uma exposição de então jovens artistas em Nisa, Castelo Branco e Tojeira, em 1995; ou então uma das mais estimulantes iniciativas que se fizeram em Lisboa nos anos 90, Lisboa Fora de Horas, comissariada por Francisco Vaz Fernandes e pela própria Graça Passos: durante toda a noite, particulares e criadores abriram as portas das suas casas um pouco por toda a cidade para mostrar projectos de arte contemporânea. Estas exposições, as mais importantes que o CENTA organizou, incluíram obras de, por exemplo, João Galante, Adília Lopes, Dino Alves, Vera Mantero, Rui Toscano, Noé Sendas, Edgar Pêra, Ana Jotta, entre dezenas de nomes. Graça Passos recorda com gosto sobretudo as residências ligadas à dança contemporânea. Dos artistas plásticos, nem tanto, já que “são muito individualistas, estão apenas interessados na sua própria carreira” – uma constatação que hoje se verifica cada vez mais.

Mostrar arte dentro de casa não é,  assim,  inédito para a família de Graça Passos. Voltemos à obra da sua avó, Rosalina. Na época em que modelava o barro, vivia numa casa de paredes vermelhas no largo da igreja matriz, mesmo em frente ao portal principal. “Todas as semanas, depois da catequese ou da missa, a minha avó abria as portas da casa e deixava que as pessoas viessem ver as esculturas que por lá estavam. Fez também um grande presépio de barro, de escala natural, que decorava, com outros do mesmo género, as varandas de São Brás de Alportel na altura do Natal.” Rosalina Passos vinha de uma família de intelectuais e artistas e tinha três irmãos: Virgínia, pintora, Boaventura, escritor, e Bernardo Passos, poeta. O marido, Virgílio Passos, seu primo, foi um republicano convicto, maçon, como era habitual na época, e um dos grandes promotores da passagem de São Brás de Alportel a concelho independente de Faro, facto ocorrido em 1914. Havia assim uma história de activismo político e valorização intelectual na família, o que terá levado Rosalina, provavelmente uma senhora prendada como as havia tantas na época, a enveredar pela prática séria e continuada da escultura a partir do momento em que um dos filhos adoeceu gravemente. Chegou a estudar em Lisboa, e de facto a sua escultura, pelo que as imagens de Luísa Ferreira nos revelam, traduz simultaneamente a sensibilidade da autodidacta e a captação dos princípios académicos de tradição naturalista comuns no ensino da época.

Quanto ao filho doente, trata-se de Joaquim Passos, o segundo escultor. Era engenheiro, a profissão mais prestigiada que existia em Portugal na década de 30. Mas em 1938 foi preso pela PIDE, submetido a tortura e, em consequência, enlouqueceu. As obras que vemos, onde é visível esse sinal do sofrimento que a loucura também é, datam dos 20 anos subsequentes a esta data. Na época, Joaquim Passos chegou a estudar na Sociedade Nacional de Belas-Artes e em Lausanne, onde foi internado nos anos 50, e finalmente submetido a uma lobotomia. Nunca mais conseguiu criar.

O olhar sobre as obras destes dois artistas, indissociável das vidas que levaram e das circunstâncias em que criaram, é-nos hoje dado através da lente de Luísa Ferreira. Mais: através do seu olhar, dos enquadramentos que escolheu, da luz que iluminou as suas imagens, e finalmente das opções de montagem que foram as suas. Este é quase um trabalho de salvaguarda de um espólio prestes a desaparecer – o barro cru é frágil, e não resiste à passagem do tempo como o cozido. Mais do que um projecto de arte contemporânea, que também é, releva das técnicas que registam o património antigo entre o momento da sua descoberta e o do seu desaparecimento por acção dos elementos. Há qualquer coisa de arqueológico neste projecto. E o olhar de Luísa Ferreira que, no fundo, permite que a escultura existe, já que ela apenas se dá a ver pela intermediação da fotografia.

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