O encontro entre a memória e a realidade numa cidade feita de histórias

Como pode um livro, uma biblioteca e uma casa-museu responder aos desafios do encontro entre o passado e o presente? Em Salvador o corpo dos que andam na rua carrega a história que a antropologia e a dança querem guardar.

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Projecto A Casa de Dimitri Tiago Lima
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O coleccionador francês Dimitri Ganzelevitch durante a apresentação do projecto A Casa de Dimitri Tiago Lima
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O antropólogo Massimo Canevacci a assinar o seu livro Tiago Lima

Da varanda do Gabinete Português de Leitura, em Salvador, parece difícil conseguir conciliar a História com a realidade. À esquerda, por cima da cabeça de Luís de Camões, vê-se a belíssima Igreja da Piedade vazia e, um pouco mais atrás, o Shopping da Piedade, verdadeira caixa cor de tijolo que engole um formigueiro popular.

Do lado direito, olhando por cima da estátua do Infante Dom Henrique, que dá nome à biblioteca, ainda se encontram os traços daquilo que foi o caminho construído pelos portugueses desde a Cidade Baixa até ao Pelourinho, em restos de edifícios de traça europeia, em nomes de ruas que evocam a luta pela independência, em placas nas estações de autocarro que levam até lugares com nomes de vilas e cidades europeias. Mas atrás de nós, nessa mesma varanda, a memória que se guarda daquilo que terá sido a história comum entre Portugal e o Brasil parece abandonada.

Mariclei, conservadora do Gabinete Português de Leitura, gostaria que a história pudesse ser contada de outra forma e, olhando para as estantes cheias de livros e as frases de Os Lusíadas pintadas nas paredes, não é difícil perceber porquê. À história que está a ser contada falta a história contemporânea, não permitindo inscrever o passado no presente.

A sala de estudo está vazia quando o PÚBLICO a visita e, no andar de cima, está por conhecer a exposição sobre a vida do Padre António Vieira e a importância actual do jesuíta, que fez o seu primeiro discurso em Salvador na Basílica da Nossa Senhora da Conceição da Praia, hoje abandonada, uma igreja que veio de Portugal em módulos prontos a serem montados naquela que é hoje a Cidade Baixa.

Mariclei lamenta que com o tempo se possa estar a perder de vista o potencial de renovação dos laços históricos através da inventividade de novos modos de diálogo. Do mesmo modo que a conservadora olha para a Praça da Piedade, da varanda, e compreende que se possa hoje ignorar o conhecimento guardado no Gabinete Português de Leitura, também o antropólogo Massimo Canevacci prefere entender as transformações inerentes à evolução do tempo como parte de um processo de transformação social.

Canevacci esteve em Salvador para apresentar, no âmbito da programação do IC8 – Interação e Conectividade, a edição brasileira de Sincrétika – Explorações etnográficas sobre artes contemporâneas, um trabalho de mais de 15 anos de observação das "realidades moventes", em que a cultura é um elemento de ligação estrutural mas não definitivo.
De origem italiana, o seu trabalho divide-se entre a Europa e o Brasil, o que lhe permitiu defender a ideia de que “idêntico não é aquele que é igual a mim, mas o que é diferente de mim, porque só isso permite a evolução”.

Para o antropólogo a dessincronia natural entre duas realidades tem sido substituída por aquilo que define como “a invenção da tradição”, um processo de construção nostálgico e artificial da própria História. Para o investigador, um projecto como A Casa de Dimitri, apresentado na noite de segunda-feira, 25, no IC8 pela dupla de realizadores Cláudia Marques e Marília Hughes, de Belo Horizonte, inscreve-se nessa lógica que recusa olhar para o presente e insiste “numa cultura tradicional parada”. O projecto convidava uma dupla de realizadores para confrontar a memória com a contemporaneidade.

 

A cidade dos sonhos

Há 39 anos a viver em Salvador, Dimitri Ganzelevitch é um coleccionador francês visto como um impulsionador das tradições que entretanto se foram perdendo. A sua casa, hoje denominada Casa-Museu Solar de Santo António, reconhecida pelo Ministério da Cultura como elemento fundamental da cultura baiana, é um lugar habitado por um gesto recolector que, a cada objecto, “quis voltar a encontrar a cidade dos seus sonhos”.

A noite programada pelo IC8 coincidiu com a realização da 3.ª Bienal de Arte da Bahia, uma recuperação de um evento transformador para a cidade e para o discurso cultural do país, mas que, após duas edições, em 1966 e 1968, foi interrompido pela ditadura militar. No Mosteiro de São Bento, por exemplo, muitas das obras que dialogam com essa memória são lápides de campas com o nome das obras desaparecidas durante as duas bienais. Todo o projecto procura construir uma identidade artística para a Bahia, ao mesmo tempo que a ocupação de vários espaços da cidade cria um mapa afectivo e emocional que lhe devolve a ideia de laboratório social e cultural pela qual gosta de se definir.

Mas a perpetuação dessa Salvador nostálgica pode ser também um revés na compreensão do presente, já que vivemos num tempo em que a homogenia concorre directamente com a diferença. É esse um dos tópicos principais do livro de Massimo Canevacci, apresentado num festival de dança onde os coreógrafos de várias zonas do Brasil pensam o lugar do corpo no espaço mediático.

O Brasil é, nesse aspecto, um caso paradigmático, afirma Massimo Canevacci, já que a construção de um discurso cultural está intimamente ligada à questão da identidade, e que se traduz na dificuldade de preservação da memória, ou na representação de uma identidade, como se espera que a dança faça – e um festival como o IC8, na possibilidade de apresentar coreógrafos de várias zonas do país, procura problematizar e contrariar. “O princípio estruturante da imagem do Brasil é a própria identidade brasileira. O brasileiro considera que o seu país é o melhor do mundo, mas compreende que o modelo de governança não é o mais adequado e essa ambiguidade é quase sado-masoquista”, considera Canevacci.

O antropólogo defende que “o Brasil é um país profundamente nacionalista, como são vários países da América do Sul, ao contrário do que acontece na Europa”, o que “deriva num problema de afirmação da sua autonomia não apenas regional mas também nacional”.

Aquilo que se define como “uma postura de cultura diferenciada”, por força do encontro entre a cultura indígena, “na qual ninguém está interessado em penetrar numa cultura fundamental para compreender a constituição da sua diferença”, e as culturas portuguesa, em primeiro lugar, e depois outras que aqui entraram, como a italiana, levou "a uma gestão política, protagonizada por Getúlio Vargas [ditador entre 1930 e 1945 e eleito Presidente da República entre 1950 e 1954, quando se suicidou], que procurou nacionalizar a cultura brasileira, ideal que ainda hoje é muito presente”. O melhor, e o mais identificável, dos exemplos é, diz, o samba. “A sua estadualização serviu para afirmar a identidade nacional, sendo que o samba resulta do cruzamento de diferentes tradições, trazendo nisso uma ambiguidade sobre a própria ideia de racismo num país que é culturalmente racista.”

Mas como pode o discurso artístico responder aos condicionalismos do contexto social, económico, político e cultural onde se insere e, ao mesmo tempo, recusar definir-se por eles, propondo um novo olhar sobre a identidade? “A imigração e a etnicidade no mundo promoveram uma profunda e radical mudança, transformando o processo de globalização num processo global que é desenvolvido localmente. A isto chama-se glocal.” No caso particular da dança, como lembra Flávia Couto, mestranda em Dança e crítica no jornal Folha de São Paulo, “a globalização é o modo de operação do corpo”.

Um trabalho como Pindorama, da coreógrafa Lia Rodrigues, que abriu o IC8, é exemplo disso e a complexidade da sua recepção, como se viu na noite de abertura (ver PÚBLICO de 25 Agosto), permite reflectir sobre o modo como a dança no Brasil, pela necessidade de lidar com as diferentes expectativas, depressa transforma a presença do corpo numa questão central no discurso sobre a identidade brasileira.

Flávia Couto, que está a fazer um estudo sobre curadoria e critica de dança, lembra que “historicidade é uma coisa e a folclorização outra". “Os símbolos da cultura, quando folclorizados, respondem a uma demanda comercial que os imune de uma compreensão do processo histórico no qual foram feitos e onde estão engajados”, reflecte.

A dança contemporânea do Brasil, acrescenta, “já não procura a afirmação dos estereótipos veiculados pelos media, já que se apresenta consciente ou fortemente atravessada por inquietações sobre os condicionamentos perversos ao qual o corpo é sujeito e pelos quais o corpo sofre, problematizando assim o seu contexto de criação”.

De certo modo, festivais como o IC8, no modo como constroem a sua programação a partir de discursos que atravessam as questões de representação e os seus limites, estão sujeitos aos mesmos desafios de uma cidade atravessada pelos contrastes provocados por aqueles que a habitam. Muito dos coreógrafos hoje deixaram de representar uma dança identificável como brasileira, por exemplo, porque deixaram de circular apenas no interior do país e se abriram a experiências internacionais.

O crítico está em Salvador a convite do IC8

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