Roth nunca saiu daqui

É génese e a paisagem de Philip Roth, o mapa da sua escrita. Na autobiografia Os Factos escreve sobre essa relação formadora. Ele quis ir para longe mas não conseguiu deixar Newark, a cidade dos tumultos e da segregação. Agora Newark quer ressuscitar mas sabe pouco de Roth

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No cruzamento da Broad Street com a Market Street, no epicentro da baixa de Newark, dois homens destacam-se pela indumentária. Fato completo, calças vincadas, sapatos engraxados, óculos escuros e chapéu de palhinha, abordam quem passa, uma massa de gente de calções, T-shirts números acima, leggings, ténis e chinelos, uma multidão sem pressa alheia a vendedores de rua adormecidos numa envolvente urbanística de prédios de fachadas semi-abandonadas, geometria irregular, com anúncios sem néons. No canto oposto do cruzamento, outros dois homens, a mesma pose, o mesmo jornal. Pedem um dólar por um exemplar do The Final Call, voz oficial de um grupo islâmico que está ali para catequizar. Alguém que estenda uma nota e o gesto é lido como de licença para evangelizar. Que diferença há entre isso e a música que sai das colunas de uma Igreja Baptista falseando um coro verdadeiro? Num caso há gente sem templo. No segundo um templo sem ninguém.

Philip Roth aprendeu a ser americano num sítio com poucos americanos de verdade, os da América épica como a soube descrever Thomas Wolfe (1900-1938). Era assim, continua a ser. Mas as semelhanças entre a Newark da juventude de Roth e a de agora acabam aqui. A fé tem pouco a ver com identidade e vende-se barata no meio do caos humano e arquitectónico que reflecte outras faltas. O seu mistério, a existir, aprofunda-se na pobreza esperançada dos que em vez do olhar sem expressão escolhem, por exemplo, entrar na Igreja pentecostal, mesmo no fim de culto. “Que pena, chegaram atrasados. Foi muito bonito”, diz a mulher loira, túnica branca. Veste de sacerdotisa e agora atenta a um casal que lhe pede ajuda. Ela ofegante, ele atrás, olhos baixos. Fazem parte dos 28 por cento da população de Newark que vive abaixo do nível de pobreza, sujeita à boa vontade de instituições e apoio religioso. São negros ou afro-americanos, como referem os census, a maioria dos que substituíram os europeus na imigração pós-industrial em Newark onde só 12% da população com mais de 25 anos é licenciada.

São rostos para números numa viagem guiada por livros onde esta paisagem, quase sempre em mudança, é protagonista tal como o seu autor. Mas ao contrário da Florença de Dante ou da Lisboa de Pessoa, a Newark de Roth não entrou no turismo literário. Nada remete para isso a não ser uma mnemónica muito pessoal. Por exemplo, um som. “Negroes”. Voz com sotaque saída da frase de um livro: “A maior parte dos empregados desta fábrica são negroes”. Era slogan de protesto na fábrica de Seymor “Sueco” Levov, o judeu esperançoso, refém numa Newark em transição retratada brilhantemente em Pastoral Americana. O inferno já estava lá. Mas não era ficção? Onde está, onde estava já então, a Newark quase idílica da infância de Roth? Cheira a canabis, a incenso, a algodão doce, há bancas com patchouli, montras de bric-a-brac e um anúncio a letras toscas a gritar que basta 12 dólares e 99 para ter quase tudo o que se pode vestir. É só escolher do monte. Quase tudo está a saldo. Outro exemplo: no velho cineteatro Newark, onde em 1952 Philip Roth viu Limelight, de Charlie Chaplin e se apaixonou pela primeira vez pela actriz Claire Bloom, a placa Lease ocupa agora o espaço antes reservado ao título do filme em exibição. Quase tudo se vende se se puder.

O molde

Philip Roth nasceu ali a 19 de Março de 1933, neto de um judeu vindo da Galícia polaca que estudou para rabi mas que foi um empregado pobre de uma fábrica de chapéus. Como muitos imigrantes europeus, vinha à procura de uma abastança fácil. Newark, com o seu porto, uma indústria em desenvolvimento e uma burguesia pujante, recebia italianos, irlandeses, alemães, polacos, russos que se instalavam no centro e à medida que iam deixando de ser operários se afastavam para a periferia mais alta. Os pais de Philip Roth estiveram entre esses pioneiros de Weequahic, bairro construído para a classe média no início do século XX. Ruas perfiladas de vivendas de madeira unifamiliares, pequeno alpendre e quintal à sombra de alfarrobeiras. Foi aí que Roth cresceu e viveu nas décadas de 30 e 40, numa comunidade judaica que convivia pela diferença, com latinos, americanos de segunda geração, os católicos que o olhavam como parte de uma minoria. Tal como Alexander Portnoy, o adolescente de O Complexo de Portnoy (1969), romance encarado como um manifesto pela liberdade num país de lutas de rua a pôr em causa a política do presidente Lyndon B. Johnson incapaz de cumprir promessas de igualdade de oportunidades como John Kennedy as anunciara. Newark, o território natural de Roth, com todas as suas desigualdades, núcleo de segregação, estava no meio desses protestos.

Estamos em território real com a ficção na cabeça. As mãos estão vazias, caem ao longo do corpo como quase todas as mãos de quase toda a gente. O vazio ajuda ao anonimato e o ambiente dos livros segue só na memória. Entre sirenes de polícia e ambulâncias, um rapaz repete aos gritos o som que lhe chega dos headphones cor-de-laranja e a voz dele apaga por momentos, e só naquele metro quadrado, o barulho de picaretas e betoneiras de uma nova cidade em construção. Arranha-céus a anunciar escritórios e habitação de luxo à prova de crime. Há grades e muros e câmaras a prometer segurança. Atraem-se empresas, constroem-se parques, e pela primeira em 40 anos, abriu um hotel na cidade. Destacam-se na primeira imagem à saída da Penn Station, a estação de comboios que liga Newark a todo o país e a escassos vinte minutos do centro de Manhattan. É um postal confuso. A velha paisagem industrial mistura-se com edifícios de vidro de multinacionais. Placas anunciam o nome do bairro: University Heights, polo financeiro e tecnológico junto à Universidade de Rutgers, onde Roth frequentou Direito, perto do Museu, do Little Theatre, de que restam apenas as letras com luzes fundidas e onde Roth terá mentido quanto à idade para poder ver Hedy Lamarr em Ecstasy. É um lugar que quer parecer novo. O anterior mayor, o democrata Cory Booker, conseguiu dinheiro de grandes grupos económicos e iniciou uma campanha onde prometia devolver a dignidade a Newark, a cidade a que não restava futuro. Ou parecia que não depois do verão de 1967.

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“Newark vai explodir”, disse Herman Roth ao filho no dia em que assassinaram Martin Luther King. Foi em Abril de 1968. Passava menos de um ano desde os tumultos que mataram 26 pessoas e feriram centenas. Foram seis dias, entre 12 e 17 de Julho de 1967. A tensão que se agravara em finais de 50 e toda a década de 60 explodia num protesto sem precedentes, com a maioria negra a reagir contra a exclusão. Social, educacional, cultural e, claro, monetária. Naquele momento, a morte do homem que pedia igualdade de oportunidades para brancos e negros parecia o prenúncio de “um desastre social inimaginável”. Herman Roth pensava nas chamas, nas sirenes, nos snipers a atirar de cima dos telhados e dos terraços para rebentar as luzes da cidade; pensava na multidão em fuga, aos gritos. O que poderia acontecer depois daquele fogo? A pergunta seria feita anos depois na ficção, pelo filho. A personagem de Pastoral Americana não encontrou outra resposta: “Nada em Newark nunca mais.”

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Philip Roth viveu no bairro de Weequahic até aos 17 anos, idade com que saiu de Newark. Há um ano a cidade quis homenageá-lo. Deu o seu nome a uma praça que não vem no mapa, no cruzamento da rua onde morou com os pais e com o irmão. A casa, uma vivenda de 1927, nunca foi da família. Um anúncio torna-a disponível a baixo preço. Estava num bairro de judeus. Hoje eles já não moram ali. Faz parte da imensa comunidade negra de Newark.

Maldição? O fim de um tempo sem que se soubesse que tempo viria. Ainda não se sabe, apesar dos tais sinais que levaram o democrata Cory Booker ao senado e deram já em 2014 a vitória a Ras Baraka, nascido na Newark da segregação, visto como um exemplo de que há saída. Os arranha-céus estão ao lado da Newark decadente, onde cada edifício parece esperar a chegada de buldozzers. Perante a revolução urbanística, há quem pergunte: “E as pessoas?” Andam pela Broad Street numa manhã de sábado e pelos becos vazios de antigas fábricas abandonadas no que parece uma reconstituição apocalíptica.

A espera de Newark tem sido intranquila. Na segunda metade do século XX a cidade perdeu dois terços da população e na década de 90 o FBI colocou-a no top das mais violentas dos EUA. Foi quando Roth escreveu Pastoral Americana (1997), romance sobre um homem derrotado pelo seu tempo. Esse homem é um judeu como ele, de Newark como ele, mas mais romântico, um herói que tenta resistir à destruição pós 67. O romance valeu a Roth o Pulitzer e talvez seja o livro onde é mais visível a relação atormentada e impossível de quebrar entre o escritor e a terra de que nunca conseguiu sair, mesmo quando quis ir para longe, aos 17 anos. Ela está numa obra que se tornou universal e que conta mais de 30 títulos, entre romances, colectâneas e não ficção. Em conversa com Claudia Roth Pierpont, autora da biografia literária Roth Unbound (Farrar, Strauss & Giroux, 2012), o escritor comparou a cidade desses anos 90 com Cartago, pelo grau e carácter da destruição.

Está menos mal hoje. Os políticos refugiam-se em estatísticas mais optimistas. Em 2012, Newark surgia no número 20 do ranking maldito, apesar de se terem registado 111 homicídios. Continua a ser a cidade mais povoada do estado de New Jersey, com 277 mil habitantes, e uma das que apresenta maior diversidade étnica dos EUA. Mas quem está parece estar só porque não tem melhor sítio para onde ir. E depois do fogo, Newark? Outra pergunta vinda da ficção. “Por vezes, quando vou visitar o meu pai a Elizabeth, faço um desvio e dou uma volta pela minha velha Newark e, num exercício sentimental, percorro as ruas que continuam a ser-me completamente familiares apesar das lojas com as montras entaipadas e das casas degradadas, e de saber que a minha cara branca não é bem-vinda.” A frase é de 1988, de num livro onde Roth quis escrever sobre os seus primeiros anos sem recorrer à ficção e fez um retrato do romancista na sua formação. Newark foi o seu molde.

O bairro

O que Dublin foi para Joyce ou Yoknapatawpha para Faulkner, é Newark para Philip Roth disse, mais ou menos assim, Bill Clinton em 1998, ano em que deu ao escritor a National Medal of Arts. Em Os Factos - Autobiografia de um Romancista percebe-se porquê ainda que entre todos os pregões e cultos e templos da baixa de Newark não restem hoje sinais de judeus. É preciso subir. Deixar o sítio onde o avô de Roth nasceu e morreu, percorrer ruas que se vão tornando mais desertas à medida que se sai do centro. Passam-se bairros sociais onde é difícil adivinhar o que está por detrás de cortinas rasgadas e cores comidas pelo sol. Carros topo de gama de vidros escuros cortam o silêncio. Há quem cultive hortas em baldios. Bergen Street, Elizabeth Avenue, Route 78, a que cortou a cidade para unir mais depressa New Jersey à vizinha Pensilvânia, e a Chancellor Avenue, com o liceu de Weequahic, antiga escola pública de referência em quase todo o século XX, onde Roth foi bom aluno e que se transformou numa das mais problemáticas do país, formadora de gangues, rapazes e raparigas que acreditam que o crime é a saída. Saída dali. 1950. 2009. O ano em que Roth se formou com distinção. O ano em que Beth Tony Kruvant filmou a violência que tomou conta da escola no documentário Heart of Stone. É uma história entre líderes de gangues e a vontade de um homem de mudar o rumo num discurso que poderia ser próximo da fé que homens e mulheres de muitos credos apregoam na baixa de Newark, mas que tem tido resultados efectivos. Lentos.

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A baixa de Newark está em transformação. Depois dos tumultos de 1967 que transformaram o centro da cidade num gueto social dominado pela violência e pobreza, os políticos anunciam uma nova metrópole. Edifícios de escritórios e habitação de luxo convivem com uma comunidade de excluídos. O que resta da Newark de Roth? A fachada de um teatro à venda – onde em 1952 viu Limelight, de Chaplin e se apaixonou pela actriz Claire Bloom.

O edifício estatal está vedado a rede e o portão de entrada intimida. Nada, a não ser o silêncio, indica problemas. Esse silêncio prolonga-se naquela zona alta da cidade. Estamos na esquina com a Summit Avenue, a rua onde Roth viveu os primeiros anos da sua vida. O percurso para o liceu era a pé e levava poucos minutos. O número 81 tem uma placa que diz que ali viveu Philip Roth e umas letras imperceptíveis a quem não consegue passar a vedação. Os jornais e as televisões estiveram lá no dia em que a cidade quis comemorar os 80 anos do nascimento do escritor. Foi no ano passado, pouco depois dele ter anunciado que não escreveria mais. Mas a placa que se destaca na casa de três pisos de madeira anuncia que se arrenda o terceiro andar. Uma pesquisa on-line e percebe-se que afinal a casa está à venda. 128 mil dólares, quando a média de valores em New Jersey para uma vivenda unifamiliar anda entre os 300 e os 400 mil. Grades nas portas e janelas indicam uma vizinhança problemática. Estamos numa tranquilidade precária. Não há excursões nem visitas à casa do escritor a quem a câmara atribuiu nome de praça. A Philip Roth Plaza não vem ainda no mapa. Está a uns cem metros da casa e não é mais do que um cruzamento onde não passa ninguém. “O nosso bairro de classe média-baixa, de casas de habitação e lojas — alguns quilómetros quadrados de ruas arborizadas acanto da cidade, que confinavam com o bairro residencial de Hillside e o semi-industrial Irvington — era para mim um refúgio tão seguro e tranquilo como para um rapaz camponês do Indiana seria certamente a sua comunidade rural. Nunca por lá aparecia ninguém mais inquietante do que o velho judeu de barbas grandes…”, lê-se em Os Factos.

Os judeus já não moram ali. Encontram-se poucos quilómetros a Sul, a caminho de outra cidade, Elizabeth, mais ruas de gente a vaguear no centro, com pequenos enclaves de classe média alta. Quem pode sai. Está nos bairros de vivendas de quintais maiores, próximo do parque de Weequahic, imensa mancha verde que vende a imagem de idílio. É depois, passado o parque, no mesmo percurso que Roth fazia para visitar o pai quando saiu de Newark, que se encontram os judeus. Mais ou menos ortodoxos nas vestes. Puderam sair como os pais de Roth. O filho por lá no seu eterno modo de contar a sua história. Summit foi a primeira casa, a segunda em Leslie Street, no mesmo bairro, agora habitado por negros e imigrantes de segunda geração da América do Sul. São a nova classe média baixa de Newark. Pertencem à mesma categoria de pessoas que fez Roth pensar, aos 12 anos, que não poderia ser senão advogado. “Eu tinha decidido que iria ser advogado dos desfavorecidos e combater as injustiças infligidas pelos violentos e pelos privilegiados”, escreve, antes de confessar a frustração de não conseguir entrar noutra Universidade que não a Rutgers e, por isso, ter iniciado uma relação conflituosa com o pai. Mas, aos 17 anos, sair de Weequahic e apanhar o autocarro num percurso de 30 minutos até à baixa era próximo de ser adulto. “Considerava uma espécie de libertação triunfante ter passado a fazer parte da sociedade multiétnica e competitiva da cidade, principalmente se pensarmos que os nossos estudos humanísticos iam contribuir — na minha perspectiva idealista — para nos elevar acima das graves diferenças sociais, para libertar da estreiteza cultural e do empobrecimento intelectual os filhos dos comerciantes judeus de Weequahic, assim como os rapazes da classe operária do bairro de Ironbound.”

Era aí no Ironbound que estavam os portugueses. Continua a ser, numa comunidade agora alargada a equatorianos, mexicanos e brasileiros, onde a segurança fez abrir bares e manter comércio de rua. Fica mais perto da Universidade do que a Weequahic de Roth. E próximo dos novos edifícios e parques públicos, onde a vigilância apertada afasta o incómodo, numa paisagem que mistura antigas estruturas industriais, prédios abandonados e árvores recém-plantadas. No recém-renovado Military Park, há canteiros com flores e jornais do dia. Um vigilante percorre os passeio numa segway e à sombra, à volta de mesas de ferro, um grupo de veteranos agradece à América o direito de estarem ali sem pagar. Tudo se passa de modo informal, mas o tom é épico.

E experimente falar-se em Philip Roth num sítio e noutro. O gesto mais vulgar é o encolher de ombros. O The New York Times fez uma reportagem no liceu de Weequahiq e nenhum adolescente foi capaz de responder à pergunta sobre quem era esse senhor. “Está vivo?” Sim e morava ali. Já não mora. O seu alter-ego, Nathan Zuckerman, diria que se não houver luta não há Roth. Ela começou o dia em que ele questionou a sua identidade. Não como judeu, mas como autor da sua própria biografia, como acontece neste Os Factos. “Como podia a Arte criar raízes num provinciano bairro judeu de Newark que não tinha qualquer ligação com o enigma do tempo e do espaço, do bem e do mal ou da aparência e da realidade?” Isso foi no princípio, como ele o conta.

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Chegar a Newark de comboio pela Penn Station, estação que movimenta centenas de milhares de passageiros por dia, é entrar numa paisagem dominada pelo que resta da industrialização e por uma modernidade apregoada em manchetes de jornais. É a cidade mais povoada do Estado de New Jersey, com população móvel, num território que fica ao nível do mar, marcado pelo aeroporto, o segundo maior a servir Nova Iorque, e por uma intensa actividade portuária.
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