Rockets com tinta

O último romance de Artur Pérez-Reverte conduz-nos às trincheiras da guerrilha urbana dos street artists

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Arturo Pérez-Reverte retoma os seus conhecidos arquétipos do herói solitário e do justiceiro que age por conta própria ENRIC VIVES-RUBIO

Se há uma constante na escrita de Artur Pérez-Reverte (Cartagena, Espanha, 1951), é a existência de uma certa tensão guerrilheira que o escritor foi curtindo na pele graças aos cenários por onde passou enquanto repórter de guerra. Retirado há mais de 20 anos, e por opção própria, dessas andanças, Pérez-Reverte reinventa essa tensão em todos os romances que escreve, quer eles sejam um mergulho na História ou na actualidade. O Francoatirador Paciente pertence a esta segunda categoria. O território de combate é aqui o mundo do graffiti, com o seu exército próprio, submisso a regras tácitas — códigos de honra que só encontram paralelo nas guerras de antanho —, ditames estéticos, especificações técnicas. Pelo rigor na forma como a documentação recolhida foi tratada por Pérez-Reverte, assessorado pelos melhores artistas deste género que trabalham em Madrid, o livro é, já agora, um excelente manual para quem quiser compreender este mundo de writers e tags.

Mas Pérez-Reverte, como se sabe, não escreve guias didácticos, antes romances trepidantes que são muitas vezes viagens ao coração das trevas. Há aqui um paralelismo implícito, mesmo se não citado, com a procura que Marlow faz de Kurtz no célebre romance homónimo de Joseph Conrad. Só que em O Francoatirador Paciente o caçador, que é uma caçadora, chama-se Alejandra Varela e a presa é Sniper, uma lenda da arte da rua que na sua cruzada ganhou foros de líder carismático com aura romântica.

Alejandra, especialista em arte contemporânea, tem como missão convencer Sniper a deixar a sombra e os métodos guerrilheiros de actuação e, vindo à luz do dia, deixar-se consagrar como um autor fundamental da arte urbana, através de um livro e de uma enorme exposição num museu de referência. A perseguição vai levar Alejandra a Lisboa e a Verona, antes do encontro cara a cara em Nápoles. Em Lisboa, recolhe testemunhos de uma noite cheia de adrenalina em que o exército de Sniper encheu a cidade de olhos negros sobrepostos por uma cruz vermelha: “Calculámos que intervieram nessa noite uma centena de writers repetindo o motivo concebido por Sniper, ainda que cada um à sua maneira: latas, stencils, cartazes, stickers… Foi bombing total, incluindo monumentos e igrejas. Até nos eléctricos. Tudo. Na estátua do Pessoa que há em frente da Brasileira pintaram-lhe uns olhos com cruzes na cara… Os serviços de limpeza contabilizaram duas mil e tal pinturas na parte nobre da cidade. Nem os Jerónimos, nem o monumento aos Descobrimentos, nem a Torre de Belém escaparam.”

O episódio de Lisboa é aproveitado para o autor se espraiar sobre o amor e conhecimento que tem da cidade, descrevendo-a como uma cidade amiga dos graffiters. É uma pausa na guerrilha, tal como o são as inúmeras vezes que se sente que apetece a Pérez-Reverte deixar cair a máscara da neutralidade e questionar, ridicularizando-os, os valores que dominam o mundo da arte contemporânea e o endeusamento do artista contemporâneo. Em nome de um certa verdade, fiel a si próprio, talvez o escritor queira deixar claro que se mantém oficial e cavalheiro, apesar do fascínio que tem pelo material com que mexe neste romance.

As páginas dedicadas a Lisboa e a Verona são um pouco menos musculadas, embora também possam ser depois percebidas como um amortecedor prévio ao desenlace da história já em Nápoles, quando as dezenas de excelentes personagens secundárias que atravessam o livro se desvanecem para dar lugar ao duelo final. E aqui, no momento em que finalmente se confrontam os seus reconhecidos arquétipos de um herói solitário às voltas com um justiceiro que actua por conta própria, o autor está ao seu melhor nível. O sexo de um e de outro tem variado conforme os romances. O mau e o bom da fita também. A Nápoles da luz crua do Sul e da decadência barroca é deslumbrante; a chegada ao tal coração das trevas, por onde passam comboios, é arrepiante.

Escrito quase a jacto, O Francoatirador Paciente lê-se, em consequência, de um só fôlego. Na linha propositadamente indefinida entre o romance de aventuras e o thriller, é o retrato de uma forma de vida que se ganha a pulso, em batalhas constantes, numa guerra em que há obviamente heróis e baixas a lamentar, ruínas e requiems.

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