Rigor e virtuosismo

Dois dos mais aclamados pianistas-compositores românticos do universo lusófono numa edição de enorme qualidade.

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A interpretação pianística de Artur Pizarro demonstra grande sensibilidade na abordagem do período romântico

Iniciada em 1991, a série The Romantic Piano Concerto da Hyperion Records continua, decorridas mais de duas décadas, a recuperar música desconhecida. Grande parte das obras incluídas nesta interessante série não tinham sido anteriormente gravadas, algumas delas nunca tinham sido sequer executadas — tal é o caso doConcerto para Piano em Lá maior de Vianna da Mota, editado em 2000. Para além do seu evidente interesse comercial e musicológico, a série The Romantic Piano Concerto conta com alguns dos mais reputados pianistas da actualidade, assim como com orquestras e maestros de renome, que lhe conferem a qualidade interpretativa a que a editora nos habituou desde sempre.

O 64.º disco da série, editado no passado mês de Outubro, é dedicado a dois pianistas-compositores do universo lusófono, internacionalmente aclamados ao longo da sua carreira como concertistas: o português Alfredo Napoleão dos Santos (1852-1917) e o brasileiro Henrique Oswald (1852-1931). A gravação conta com a interpretação do pianista português Artur Pizarro (que já tinha sido o pianista escolhido para a gravação do disco de Vianna da Mota) e da BBC National Orchestra of Wales, sob a direcção do inglês Martin Brabbins. 

Ambos os concertos, pelo virtuosismo exigido ao solista, justificam a reputação que Napoleão dos Santos e Oswald granjearam em vida enquanto pianistas. Por outro lado, a riqueza temática, a profundidade expressiva e o equilíbrio formal das duas obras demonstram a capacidade composicional dos dois músicos. O Concerto Nº2 em Mi bemol maior Op. 31 de Napoleão dos Santos, composto provavelmente na década de 80 do século XIX, apresenta um conjunto de características originais. Destacam-se a tonalidade de mi bemol menor (é provavelmente o único concerto romântico que se conhece nesta tonalidade) e a organização inusitada dos andamentos (Andantino MaestosoScherzo e Allegro — Più vivo). O aparente desequilíbrio das proporções de cada andamento (o primeiro andamento dura quase 20 minutos enquanto o segundo mal ultrapassa os quatro e terceiro ronda os 13) é contrariado pelo retorno a temas do primeiro e do segundo andamentos no final do terceiro, contribuindo para a consistência formal do concerto. O sentido formal de Napoleão dos Santos evidencia-se também no primeiro andamento, no qual o compositor combina com mestria a estrutura da forma sonata com a fantasia e o lirismo romântico num andamento de grande dimensão. Ao nível orquestral, a obra apresenta recursos simples mas eficazes, nomeadamente os vários solos das madeiras e da trompa que por vezes dialogam entre si ou se contrapõem ao piano (por exemplo na secção lenta do Scherzo, em que o piano e a trompa dialogam sobre um fundo discreto de cordas, proporcionando uma das passagens mais belas da obra).

Composto em 1886, o Concerto em Sol menor Op. 10 de Oswald é mais conservador na forma e mais contido no conteúdo. Apesar do brilhantismo da parte solista, nem sempre o discurso musical flui de forma natural, particularmente em algumas secções de transição e de desenvolvimento do primeiro andamento. A obra apresenta no entanto um conjunto variado de temas expressivos e bem desenhados que proporcionam momentos de puro deleite auditivo — refiro a título de exemplo o segundo andamento, inicialmente muito delicado e expressivo mas que vai sendo gradualmente conduzido para um intenso e apaixonado clímax. Tal como no concerto de Napoleão dos Santos, a orquestração não é tão elaborada como a parte de piano, no entanto é eficaz e apresenta diversidade de soluções. 

A interpretação de Artur Pizarro e de Martin Brabbins demonstra um profundo conhecimento das duas obras, assim como grande sensibilidade e rigor na abordagem do repertório romântico. Tal observa-se na escolha dos tempos, na excelente noção de fraseado e na utilização do rubato. A boa concepção formal e o perfeito equilíbrio entre o piano e a orquestra contribuem também de forma decisiva para a excelente qualidade musical deste disco. Destaca-se ainda a capacidade técnica e expressiva de Artur Pizarro, que corresponde na perfeição às exigências do repertório. 

Este disco é sem dúvida uma excelente aquisição para quem deseja alargar o seu conhecimento sobre o repertório pianístico romântico. Para o público português, o disco apresenta um interesse particular ao incluir a primeira gravação do segundo concerto de Alfredo Napoleão dos Santos. Esperemos também que esta edição discográfica estimule o interesse de outros pianistas na inclusão destas duas obras em programas de concerto. 

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