Revolta e esperança

Uma colectiva desigual e voluntariosa “salva” pela presença de obras que se revoltam contra os contextos e as circunstâncias

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A instalação de Fernando J. Ribeiro, à esquerda, e as fotografias de Pauliana Valente Pimentel, à direita, são o melhor desta exposição

No artigo La révolte des Lettres et des Arts, de 1968, o sociólogo francês Lucien Goldmann escreve que a produção artística tem dois modos distintos de exprimir a revolta contra a “sociedade dos especialistas”. A primeira através da criação de novas formas de expressão (Goldman inclui aqui o Nouveau Roman francês). A segunda por meio das obras que elegem a revolta do homem na e contra a sociedade como a sua preocupação, o seu tema e o seu conceito estruturante.

A colectiva Art Stabs Power — que se vayan todos!, um projecto da curadora Inês Valle, pode inscrever-se com facilidade nesta última “categoria”, embora sem o âmbito e a profundidade das obras analisadas pelo autor (no caso, vários textos teatrais de Jean Genet).

Instigada pela crise financeira e as políticas de austeridade e composta de trabalhos de 16 artistas, portugueses e estrangeiros, esta exposição (patente no edifício Transboavista, em Lisboa) retoma problemáticas que, sem o necessário aprofundamento, correm o risco de se anularem na redundância ou na mera ilustração. Como exprimir a revolta por meio de arte se a revolta desapareceu da sociedade? Como defender a relevância crítica da arte, e as suas ligações ao activismo e à política, se muita da arte (contemporânea) se acoita, muda e altiva, no conforto melífluo da especulação? São perguntas que Art Stabs Power raramente reconhece, reproduzindo, do texto de sala (com a habitual menção a Giorgio Agamben, autor que se tornou um cliché em muitos textos de arte) a uma boa parte das obras, um voluntarismo tão bem-intencionado quanto escolar. Resumindo, o espectador antecipa, sem grande esforço, algumas das imagens, dos discursos e dos acontecimentos que a atravessam.

Há obras que se furtam a prescrições e guiões. Num pequeno filme, a artista Susana Chiocca atira, repetidamente, pequenos galos de Barcelos a uma imagem pintada no chão de Angela Merkel, diante da estupefação dos transeuntes. Os objectos partem-se, pedaços voam no ar, mas a artista insiste, devolvendo a frustração e a inutilidade do seu gesto ao espectador. Como se a este coubesse, afinal, pensar e inventar novas formas de protesto e de acção. A proposta de Fernando J. Ribeiro é uma instalação: uma superfície de cetim azul, suspensa na vertical, que vela batatas fritas espalhadas no chão (podiam ser pétalas ou folhas). A referência ao projecto europeu e à sua falência hipotética surge evidente (as batatas caíram do cetim), mas a obra não se resume à metáfora de uma desilusão. A presença do azul, as memórias da pintura que o monocromo evoca, envolvem o espectador num outro tempo que não o do século XXI. Mencionem-se, por fim, as três fotografias de Pauliana Valente Pimentel. Ao lado dos outros trabalhos, tendem a passar despercebidas, tal a sobriedade dos seus motivos, mas é exactamente uma fotografia desta artista que redime a exposição: a da mulher grega grávida, o braço a afagar a barriga, que olha para fora de campo: “(…) é o nascimento de novos seres humanos e o novo começo a acção de que são capazes em virtude de terem nascido. Só o pleno exercício dessa capacidade pode conferir aos negócios humanos fé e esperança (…). Esta fé e esta esperança no mundo talvez nunca tenham sido expressas de tão modo sucinto e glorioso como nas breves palavras com as quais os Evangelhos anunciaram a ‘boa nova’: Nasceu uma criança entre nós”, escreveu Hannah Arendt em A Condição Humana

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