Rejeitar Deus

Um jesuíta, um dominicano, um sociólogo, um antropólogo e um ateu falam do significado da apostasia e da religião nestes tempos pós-seculares. Silêncio é um sinal da individualização do religioso na sociedade contemporânea.

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O filme conta a história da renúncia à fé cristã do jesuíta Cristóvão Ferreira após tortura. Baseado no romance escrito por Shusaku Endo em 1966, fala do impacto dessa apostasia na Europa Kerry Brown

Silêncio não é um filme confortável para os jesuítas. “Tem sido um desafio muito grande para a Companhia de Jesus”, explica José Maria Brito, padre jesuíta de 41 anos, “mas isso não significa que esteja a ser rejeitado”, antes pelo contrário. O filme e o livro que lhe deu origem já foram discutidos pelo Papa Francisco, ele próprio um jesuíta, e pelo realizador, Martin Scorsese, numa audiência no Vaticano depois de Silêncio ter sido mostrado a 300 jesuítas. Tal como em Portugal, tem sido assim um pouco por todo o mundo: os padres têm visto o filme em visionamentos especiais ou em antestreias, como há uma semana no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, sessão onde esteve também o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

O filme conta a história da renúncia à fé cristã do jesuíta Cristóvão Ferreira após tortura. Foi o último chefe da Companhia de Jesus no Japão do século XVII, já depois de ter sido decretada a expulsão dos portugueses e iniciada a perseguição aos cristãos. Baseado no romance escrito por Shusaku Endo em 1966, fala do impacto dessa apostasia na Europa — após o sucesso que tinha sido a evangelização do Japão iniciada no século XVI com 300 mil convertidos no seu pico — e acompanha a viagem de dois jovens jesuítas, Sebastião Rodrigues e Francisco Garrpe, que não acreditam que o padre Ferreira não tenha querido morrer como um mártir, seguindo o exemplo de outros missionários.

“O filme tem sido muito bem recebido como um interpelador, como inquietante. Pode ajudar-nos a não fazer uma leitura simplificada da fé. Isso é bom, mas não é confortável.” José Maria Brito cita o Papa Francisco para dizer que o jesuíta é o homem do pensamento incompleto. “É a ideia de que nos falta sempre alguma coisa. O filme é um convite a levarmos a sério o discernimento, coisa que o Papa nos tem pedido muito. Tentarmos perceber por onde é que passa a vontade de Deus e não ter respostas pré-estabelecidas e adquiridas.”

É uma obra para este tempo pós-secular, em que a religião reemerge como tema central da actualidade. Levanta questões, desde as mais óbvias, ligadas ao fundamentalismo e ao terrorismo em nome de Deus, até aos limites da liberdade religiosa e do proselitismo, como o encorajamento da conversão de pessoas de outras confissões nas religiões que se afirmam como universalistas.

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“A subtileza do filme é mostrar-nos que nem sempre é óbvio percebermos onde é que está a fidelidade a Deus. A cada momento, quando tenho de tomar uma decisão, como é que percebo qual é realmente a escolha que me aproxima mais daquilo que Deus me pede? Perceber que isso nem sempre é óbvio, nem é claro”, afirma José Maria Brito. Deus é traído quando os cristãos perseguidos são convidados a pisar uma placa de cobre com a imagem de Cristo impressa sob ameaças de tortura e morte?

“É um filme que nos obriga a confrontarmo-nos com a fragilidade da própria experiência de fé e com aquilo que é a experiência do limite. Obriga-nos a olhar para a nossa própria fragilidade”, diz o jesuíta. Naquele momento preciso de pisar o fumie onde é que está verdadeiramente a imagem de Deus? O que é que vale mais? As pessoas que estão a ser torturadas ou a imagem que os missionários, em vários momentos, são convidados a pisar? “É nessa altura que eles percebem que Deus não fala só dentro deles, mas através da realidade, através dos outros. E é nesse momento de compaixão pelos outros que o silêncio de Deus se quebra.”

O filme defende que não nos compete a nós decidir quem é fiel ou infiel. “Diz-nos que a última palavra é de Deus, para além daquilo que às vezes conseguimos ouvir. Parece-me que é outro ponto importante da actualidade. Uma das grandes tentações do fundamentalismo é colocar-nos no lugar de Deus e sentir que o Juízo Final é competência dos homens.”

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A apostasia nunca é uma escolha da Igreja Católica e o lugar da apostasia, através de uma tomada de posição pública, é hoje reduzido, diz Frei Bento Domingues, da Ordem dos Dominicanos, e cronista do PÚBLICO. Explica que no direito canónico católico se afirma a diferença entre apostasia, heresia e cisma: “Cisma é uma dissidência quanto à autoridade eclesiástica, o Papa. Heresia é estar de acordo com umas coisas e não com outras, a palavra significa uma escolha. Ao passo que a apostasia é ‘ficar longe de’, afastar-se definitivamente e, em alguns casos, frontalmente.”

Europa pós-cristã

Essa menor necessidade de proclamar uma oposição ao cristianismo ou à Igreja Católica deve-se, segundo Frei Bento Domingues, ao Concílio do Vaticano II, nos anos 60 do século XX, e ao documento sobre a liberdade religiosa: “Afirma a liberdade de praticarmos a religião que entendermos ou não praticar nenhuma, de acreditar ou não acreditar. É uma revolução e uma espécie de aplicação à Igreja Católica daquilo que é um direito humano. Antes do Vaticano II dizia-se que direitos só tem a verdade e como nós somos a verdade os outros não têm direito à liberdade religiosa. Quando muito, havia tolerância, mas dependia dos países. O Vaticano II afirma que o sujeito de direitos são as pessoas e são as pessoas que devem ter liberdade de escolha.”

Entretanto, surgiu todo um vocabulário para interpretar as práticas religiosas dos cristãos pós-Vaticano II e fala-se, com João Paulo II e Bento XVI, de uma Europa pós-cristã ou mesmo de uma Europa que apostatou, uma vez que não é maioritariamente ou declaradamente cristã. “Há uma reinterpretação das práticas religiosas. Há uma recomposição das expressões da fé. Uns mandam baptizar os filhos, outros não, uns casam-se pela igreja, outros pelo civil ou estão numa união de facto. O clima actual para a apostasia num país como Portugal é quase inexistente. Já há tantas apostasias no sentido metafórico, as rupturas já são de tal forma, que as pessoas não sentem necessidade nenhuma dessa manifestação pública.”

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Frei Bento Domingues, 82 anos, explica que os que se dizem católicos já não o fazem pelos mesmos motivos que os outros que se diziam católicos anteriormente. E o que se discute dentro da instituição eclesiástica é se as pessoas se estão a afastar e porque podem não se reconhecer na Igreja Católica.

Para Frei Bento, é também o trabalho do Papa Francisco que está a tornar a apostasia inútil. “A apostasia surgia porque anteriormente era necessário resistir à tradição inquisitorial e à pressão social. Neste momento, no campo católico, não digo em todas as igrejas cristãs, o princípio é o acolhimento de todas as pessoas, sobretudo os mais desfavorecidos, os mais isolados, as vítimas. A pessoa não tem de protestar, porque o Papa não está a impor nada. Ele vive no mundo da pura proposta.” Isto, acrescenta o dominicano, é uma mudança de paradigma. “A Igreja é uma enviada às periferias como foi no caso de Jesus. Jesus era mal visto pela religião oficial, porque andava com os chamados ‘pecadores’, com os heréticos, que não praticavam a verdadeira religião.”

O caminho que o Papa Francisco propõe é o diálogo, defende Frei Bento: ecuménico com as outras igrejas cristãs ou inter-religioso com todas as religiões. “Só os católicos comodistas é que dizem que ele está a estragar a religião, porque o Papa com o seu universalismo prático mostra que também tem dúvidas. Ao mudar o paradigma do seu trabalho, esvaziou muito a animosidade das pessoas que se sentiam oprimidas dentro da religião católica por aquilo que exigiam delas.”

Sociedade pós-secular

O sociólogo Tiago Pires Marques, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra que estuda identidades religiosas no período contemporâneo, diz que em Portugal existem renúncias de pertença à Igreja Católica, a religião de origem da maioria dos portugueses.

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Em 2010, por exemplo, a Associação Ateísta Portuguesa promoveu uma campanha de apostasia, para coincidir com a visita do Papa Bento XVI, e evocava a intenção de lutar contra a ideia de Portugal ser uma sociedade maioritariamente católica, com base nas estatísticas que mostram que 80 por cento das pessoas se dizem ligadas à Igreja Católica, para defender a laicidade do Estado português.

De facto, como continua a prática dos baptismos em tenra idade, explica o padre dominicano, há algumas pessoas que em adultas podem não querer estar no rol dos que são contabilizados como católicos. Era a estes que a campanha se dirigia, divulgando uma minuta que os candidatos a apóstatas podiam preencher e enviar para as respectivas paróquias.

Como não há uma sanção religiosa, política e comunitária, o sociólogo, de 43 anos, não chamaria a esta desvinculação “apostasia”. “Não creio que em Portugal, ou na maior parte das sociedades em que o cristianismo é maioritário, essa sanção exista. Não há consequências jurídico-políticas para a pessoa.”

O impacto da campanha, que o sociólogo não estudou, parece-lhe que foi mais intenso em Espanha — o que está de acordo com a percepção de Frei Bento Domingues, por causa da existência no país vizinho de uma Igreja mais conservadora ligada ao cardeal Rouco Varela.

Carlos Esperança, presidente da Associação Ateísta Portuguesa, conta que tiveram algumas dezenas de pedidos de ajuda, mas entre os sócios só meia dúzia é que conseguiu ver o seu baptismo apagado dos registos paroquiais. “No meu próprio caso, uma paróquia da Guarda, responderam-me que se é católico para toda a vida e não me deram nenhum comprovativo de que o meu pedido tinha sido concedido.” Do que sabe através da sua experiência como presidente da associação, apenas a diocese de Lisboa tem procedido à “desbaptização”.

No Patriarcado de Lisboa, não se sabe quantos portugueses pediram para serem “desbaptizados”, utilizando as palavras de Carlos Esperança. “Não temos dados, porque não recolhemos os pedidos das pessoas que querem ser retiradas dos livros de baptismo. Existem pedidos, mas não os conseguimos quantificar”, diz Filipe Teixeira, do Departamento de Comunicação do Patriarcado. “A parte burocrática é sobretudo tratada pela paróquia, porque o assento de baptismo está lá. A Diocese de Lisboa só recebe a notificação e até agora não fizemos essa contagem.”

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Frei Bento Domingues também não conhece o número dos que já quiseram anular o seu baptismo em Portugal. Diz é que já não faz sentido distinguir entre “católicos praticantes” e “católicos não praticantes”, numa contabilidade das práticas cristãs que se fazia num domingo do ano entre as pessoas que iam ou não à missa. “Essa fórmula desapareceu e não é uma boa contabilidade, porque uns vão uma vez por mês, outros uma vez por ano, e consideram-se católicos. Muitas vezes, o número superior estava entre os católicos não-praticantes. Mas não praticantes de quê? Dos rituais? Dos sacramentos?”

O sociólogo Tiago Pires Marques cita o relatório das identidades religiosas em Portugal, feito na Universidade Católica por Alfredo Teixeira, que mostra entre 1999 e 2011 uma subida das pessoas que não têm religião (8,2% para 14,2%) e, dentro desta categoria, um aumento dos crentes sem religião (2,1% para 4,6%), ao mesmo tempo que há um declínio entre os católicos (86,9% para 79,5%). “Se os primeiros números das pessoas sem religião mostram um processo de secularização que já vinha detrás, os dos crentes sem religião sugerem que estamos a entrar numa sociedade pós-secular. Nesta última, as fronteiras entre o religioso e o secular, dadas por adquiridas nas teorias mais correntes da secularização, são hoje colocadas em causa por alguns movimentos que se reclamam das espiritualidades, por algumas formas de ressacralização de aspectos da vida ou por aqueles que se afirmam crentes mas sem pertença religiosa.”

Individualização religiosa

O antropólogo Alfredo Teixeira reconhece o aumento dos crentes sem religião como uma das dinâmicas da recomposição da religião nas múltiplas modernidades, tão documentável como a secularização. “O seu crescimento é muito importante em termos de análise — mesmo se estamos a falar de um grupo pequeno em termos relativos —, porque é um dos sinais típicos de transformação das nossas sociedades em direcção a uma hiperindividualização do religioso.”

Sobre os crentes sem religião a grande pergunta que fazem normalmente a Alfredo Teixeira é: no que acreditam estas pessoas? “Elas podem não saber responder a isto com muito rigor, porque no fundo sentem-se subjectivamente abertas a essa dimensão da experiência humana que pode ser alguma coisa que está para além de nós e nos ultrapassa. Só que vivem sem necessidade de objectivar isso num credo, num qualquer dogma ou de criar um qualquer vínculo comunitário com um grupo. Esta é uma dinâmica de transformação que é difícil de compreender, porque é muito heterogénea e está muito marcada por esses percursos de grande individualização.”  

A categoria de crentes sem religião não aparece nos estudos em Portugal anteriores a 1999, explica Alfredo Teixeira, e surge para evitar uma sobrerrepresentação da maioria histórica católica, explica o coordenador do Centro de Estudos de Religiões e Culturas da Universidade Católica e autor do relatório de 2011. O que é que responderiam essas pessoas, se não houvesse a categoria do crente sem religião? — pergunta o antropólogo. “A hipótese que colocamos é que tendencialmente uma parte dessas pessoas engrossaria o número de católicos. Quando aplicamos à população um questionário sobre realidades complexas como é a questão religiosa, as pessoas tentam ajustar-se o melhor possível às categorias que são propostas ou não respondem. Esse ajuste podia passar por escolher a identidade católica, porque mesmo assim era aquela que de alguma forma lhes aparecia como mais próxima da sua identidade.”

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A categoria apareceu para estudar sociedades que são marcadas por uma maioria religiosa histórica e cultural como Portugal. “Uma percentagem significativa da população encontra-se numa situação complexa face à sua posição religiosa, porque são pessoas que fizeram uma socialização católica primária e depois se distanciaram. Não se sentem pertencentes à comunidade católica, mas não se tornaram membros de qualquer outra religião, nem se identificam com qualquer das posições tradicionais de não crença (ateus, agnósticos, indiferentes).”

Numa entrevista a Scorsese, o jesuíta James Martin, conselheiro do filme, discute com o realizador a atracção que o filme pode ter para uma pessoa sem fé. É fácil a identificação com o caminho “muito livre” do padre Sebastião Rodrigues, que no final do filme toma uma decisão (e não vamos revelar qual é) contrária, “antitética, ao que provavelmente toda a cultura cristã europeia pensava que devia ser feito”. 

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