Regressar ao Portugal profundo da arquitectura informal

A urbanização do Monte Xisto, em Matosinhos, é o Portugal profundo da arquitectura informal. Derrocadas, desalojamentos e habitantes em ferida são os efeitos deste processo, que o jornal Homeland levou à Bienal de Veneza.

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Claudemira e o seu marido Albino Borges, 67 e 68 anos, ambos reformados, usam o pequeno anexo da casa de onde foram desalojados em Dezembro de 2005, após uma derrocada na encosta, para fazer diariamente o almoço Fernando Veludo/nfactos
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Com as suas propostas para o Monte Xisto, Tiago Mota Saraiva e Paulo Moreira querem também contrariar “aquele discurso clássico, de que agora não há trabalho para os arquitectos” Fernando Veludo/nfactos

“Vai fazer nove anos no próximo dia 5 de Dezembro, mudaram-nos para Gatões, dizendo que era só até fazerem as obras aqui. Nove anos, na nossa cabeça, é muita coisa”, reflecte o casal, que continua à espera que a autarquia cumpra o prometido.

É hora de almoço e o sol bate, inclemente, neste morro “afavelado” na margem esquerda do Rio Leça, em Guifões, Matosinhos. Claudemira e o seu marido Albino Borges, 67 e 68 anos, ambos reformados, usam o pequeno anexo da casa de onde foram desalojados em Dezembro de 2005, após uma derrocada na encosta, para fazer diariamente o almoço. Continuam a viver aqui o seu dia-a-dia, e só à noite vão dormir ao apartamento que a câmara lhes atribuiu, “provisoriamente”, a algumas centenas de metros no lado oposto do morro.

“Se tivéssemos abandonado isto, já estava tudo estragado”, diz Claudemira a justificar esta obstinação em permanecer ligada à casa e ao lugar que ela e o marido fizeram seus há já mais de quatro décadas, após terem casado em 1970.Entretanto, sucederam-se novas promessas camarárias, estudos urbanísticos, processos em tribunal… Mas a situação continua por resolver. Esta encosta do bairro construído clandestinamente nas décadas de 1960/70 permanece uma ferida aberta na paisagem, e uma dor funda no quotidiano de Claudemira e Albino. “Se ao menos nos dessem uma indemnização para nós fazermos uma casita como esta, nós íamos à nossa vida”, diz o segundo.

Esta história – que o Ípsilon foi conhecer no local, na semana passada – está contada nas páginas 19 e 20 do jornal Homeland, que representa Portugal na Bienal de Arquitectura de Veneza.

Como é que os casos humanos de algumas famílias de um bairro clandestino de Matosinhos, na “face escura” – mesmo que iluminada pelo sol – desta cidade que se orgulha de acolher arquitecturas e soluções urbanas assinadas por Álvaro Siza, Alcino Soutinho e Eduardo Souto de Moura, foram parar à cosmopolita mostra veneziana?

Paulo Moreira (n. Porto, 1980), o arquitecto que assina o “artigo” de Homeland, explica: “Recebi um convite do Pedro Campos Costa para trabalhar o tema da arquitectura informal a partir de um caso no Norte, e pus-me a procurar. Numa primeira fase, recorri mesmo ao Google à procura de áreas de formação espontânea. Acabei por vir parar a Matosinhos, e o Monte Xisto pareceu-me interessante – e casos como o deste casal são muito fortes”.

Licenciado na Escola do Porto, Paulo Moreira tem já experiência de trabalho em estaleiros de arquitectura informal, como o projecto que em 2012 o levou aos musseques de Luanda, e lhe valeu o Prémio Távora. Para o Monte Xisto, está associado ao Ateliermob, uma plataforma multidisciplinar fundada em Lisboa, em 2005, por Tiago Mota Saraiva e Andreia Salavessa, e que aqui desempenha o papel de “editor do informal”, explica o primeiro.

Sob o chapéu do Homeland, ambos esperam poder mudar alguma coisa na situação das famílias desalojadas ou afectadas pela instabilidade e pelas indefinições na urbanização do Monte Xisto. Em articulação com os responsáveis da Câmara de Matosinhos – a visita que nos guiaram ao bairro aconteceu logo após mais uma reunião na autarquia –, Paulo Moreira e Tiago Mota Saraiva (acompanhados por outras colaboradoras) esperam que os seis meses da Bienal de Veneza (e os três números do jornal português) sejam tempo suficiente para se iniciar uma intervenção no bairro.

No programa – que “deverá contemplar nove casas e cinco famílias”, estima Paulo Moreira –, está a consolidação das habitações e da encosta, mas também o lançamento de uma nova ligação entre as cotas alta e baixa e a criação de novos equipamentos para usufruto colectivo.

A ideia é realojar e fazer regressar as pessoas aos lugares a que ganharam apego durante tantos anos de vida em comum. Uma decisão que “pode mudar o paradigma do realojamento fora do local onde as pessoas moram”, acredita o arquitecto.

O Ateliermob tem também experiência de trabalho ao serviço das populações, como a que realizou no sul de Itália, na região de Basilicata. Tiago Mota Saraiva diz que isso, ligado ao facto de serem também um atelier de arquitectura, facilita a tarefa no Monte Xisto. “O nosso trabalho é alavancarmos processos que permitam solucionar situações como esta”, diz o arquitecto, acrescentando que a tarefa prioritária no bairro de Guifões é “conter as terras e minimizar o risco de novas derrocadas”.

O sócio-fundador do Ateliermob explica ainda que o caso do Monte Xisto é paradigmático do que aconteceu em Portugal, principalmente após o 25 de Abril de 1974, quando as pessoas tomaram em mãos o seu direito à habitação. “Elas sentiram que podiam fazer as suas casas, sem que a PIDE ou a polícia aparecesse lá a impedi-las”, nota. Mas a esta arquitectura informal faltou, naturalmente, o planeamento – que, noutras situações e em diferentes lugares do país, foi assegurado pelo histórico projecto SAAL.

Com as suas propostas para o Monte Xisto, Tiago Mota Saraiva e Paulo Moreira querem também contrariar “aquele discurso clássico, de que agora não há trabalho para os arquitectos”. “Há imenso trabalho para fazer no nosso país; há é pouco dinheiro afecto a isso, mas nós vamos tentar desbloquear essas limitações com os meios que estiverem disponíveis”, diz o primeiro. E a Bienal de Veneza, com a visibilidade que tem, poderá ser um bom ponto de partida para alavancar novos projectos de intervenção na área da arquitectura informal.

No início de Outubro, no átrio da Câmara de Matosinhos, uma exposição documental – com os projectos de arquitectura e as fotografias do processo, de autoria de Nelson d’Aires, Valter Vinagre e Paulo Pimenta – dará conta dos trabalhos, numa altura em que a Bienal de Veneza ainda estará a decorrer (termina a 20 de Novembro). Então se saberá melhor de que modo Homeland estará a fazer reflectir cá dentro a “mensagem” que levou à bienal comissariada por Rem Koolhaas. “Se nessa altura a intervenção no Monte Xisto estiver só a começar, já será muito bom”, diz Paulo Moreira, crente de que os efeitos reais deste projecto precisam de tempo.

 

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