Regressado das trevas

O mítico produtor e autor regressa ao fim de 16 anos para pôr os baixos nos Gs – não há morte de filho nem acusação de violência doméstica que o pare: o talento ainda está lá todo.

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Dos sete álbuns que Dre produziu entre 1983 e 1992 para a Ruthless Records, sete atingiram platina DR

E eis que finalmente, 16 anos depois, chega um dos álbuns de hip-hop mais aguardados de sempre, Detox, o terceiro disco a solo de Dr Dre.

Não há maneira fácil de vos trazer esta notícia, por isso aqui vai: ainda não é Detox, que provavelmente nunca chegará. O que temos é Compton, A Soundtrack, uma banda-sonora – no caso, do filme Straight Outta Compton, que conta a história dos N. W. A., sigla que significa Niggaz Wit Attitudes, o projecto que fez de Dre – que produzia, enquanto Ice Cube, entre outros, debitavam rimas – um homem rico. Desde os tempos dos N.W.A. para cá Dre tornou-se muito rico – e extremamente esquivo. De modo que quando ele ressurge, o mundo pára para ouvir.

Que importância tem Compton – o disco e o sítio? Bem, Compton é de onde Dre e os N.W.A. vêm e Compton (o disco) seria sempre importante porque, que mais não fosse, é apenas o terceiro álbum de um homem que anda a produzir sucessos há mais de trinta anos. E quando em mais de 30 anos só se fez dois discos a solo, quando chega o terceiro isso é um acontecimento.

Compton, sendo a banda-sonora de um filme sobre os N.W.A. e que ainda por cima toma o nome do disco de estreia do grupo, também chamado Straight Outta Compton, obriga-nos a olhar para o passado, de modo a entender como é que Dre se tornou um dos músicos mais ricos e poderosos do mundo, mantendo ao mesmo tempo um secretismo enorme – cortado pela ocasional acusação de violência doméstica.

Straight Outta Compton, lançado em 1988, vendeu três milhões de discos, deixou meio mundo irado com o conteúdo das letras, zangou o FBI à conta de Fuck tha police (um dos temas) e anunciou ao mundo que o hip-hop era um negócio de milhões. (O seu segredo? Devolver a imagem que os brancos haviam criado dos negros.)

Deve ter sido um momento marcante para um homem que nascera pobre e aos 17 anos já tinha sido pai de uma criança que só conheceria vinte anos mais tarde, e que cedo encontrou refúgio na música. “É preciso entender que quando eu tinha vinte anos já tinha uma casa, um Mercedes, um Corvette e um milhão de dólares no banco – e legalmente ainda não podia comprar álcool”, disse um dia Dre, numa das suas raras declarações públicas.

Dre não é homem de um só êxito – na realidade produziu uma porrada deles. Um dos quais em nome próprio: em 1992 lançou The Chronic, primeiro disco a solo. Era inevitável que o fizesse, e que rompesse com os N.W.A.: era uma questão de ego. E o de Dre era grande ao ponto de dizer: “Fui eu quem lançou o Ice Cube. E também lancei o Eazy-E. Não há a mínima dúvida que se os N.W.A. se tornaram no que são isso deve-se à minha música e à minha forma de produzir um disco”.

Lá produzir um disco sabia ele: Chronic tornou-se um êxito massivo, mudou todo o jogo e definiu o som do hip-hop durante anos. Não graças às rimas de Dre, que nunca foi um grande MC, mas graças ao seu som, à sua produção – e às rimas de Snoop Dogg, por exemplo, que nesse disco se estreava – e estava por todo o lado. Ouviamo-lo rapar em Bitche's ain't shit e era certo: nascia ali uma estrela.

Pode perguntar-se: como é que The Chronic mudou o jogo? A resposta está numa reportagem que a Rolling Stone fez com Dre em 1993, durante a filmagem do video Let me ride (incluído em The Chronic). Num momento das filmagens Jimmy Iovine, dono da Interscope Records, vira-se para o repórter e diz: “Estás a ver ali aquele puto? É o meu sobrinho de 12 anos, que é de Staten Island [Nova Iorque]. Não há mais branco e suburbano que ele. Mas tudo o que ele ouve é música do Dre. Quando se vende tantos discos, nem todos vão para o sul do Bronx”.

O que Dre fez foi criar um som que chegava a todos – pretos ou brancos, independentemente do que raio os MCs estavam a rapar – e em The Chronic afastava-se da política, que existia nos N.W.A.. Esse som estava estampado num dos singles de Chronic, Nothing but a 'G' thang – e era naquele G que a máquina registadora fazia tlim.

O G é uma referência ao que foi apelidado de G-funk, forma curta de dizer Gangsta-rap, o som que Dre criou com os N.W.A., mas que em Chronic se modificou de modo a soar menos hardcore e mais roliço. G-funk também é uma referência directa ao chamado P-funk, o funk que os Parliament faziam e Dre apreciava. Dre não gostava de exagerar nos samples: o som dele – assente no groove do baixo, na batida e numa linha de sintetizador – era tocado em estúdio, o que lhe dava uma qualidade particular.

Os Parliament não eram a única música antiga que Dre apreciava – ele cresceu com ela. “Lembro-me de ter quatro anos e a minha mãe mandar-me empilhar discos de 45 rotações e quando um acabava o outro começava (…) Era como se eu fosse o DJ lá de casa”, dizia, na mesma reportagem. Mais tarde, quando se tornou DJ num clube de LA, Eve After Dark, usava “muitas velharias, como discos de Martha & The Vandellas”, e isto é um grande sinal de bom gosto.

De então para cá Dre não ficou parado mas permanceceu na sombra: haverá muitas razões para isto e uma delas pode residir num acidente ocorrido em Fevereiro de 1991: o programa Pump It Up, da Fox, passou um vídeo em que membros dos N.W.A. diziam mal de Ice Cube (que deixara o gupo) e em que este fazia o mesmo em relação aos restantes. Dre encontrou Dee Barnes, a apresentadora do programa e, segundo esta, agarrou-a “por trás, pelo cabelo” e “começou a atirar a [sua] cara e o lado direito do [seu] corpo contra uma parede”.

Não há muitas declarações de Dre sobre o assunto – há duas. Uma, em 1991, à Rolling Stone: “Se alguém me fode, eu fodo-o. Fiz o que tinha a fazer. E não há nada que se possa fazer quanto a isso. Além do mais, não foi nada de especial – só a atirei contra uma porta”. E outra, recente, de novo à Rolling Stone, em que pedia desculpa pelo incidente. Na altura Dre escapou à prisão, mas foi condenado.

Porque é que um caso ocorrido em 1991 obstaria a que Dre capitalizasse ao máximo a sua persona pública quando The Chronic só saiu em 1992? Bem, a sentença em tribunal só saiu em 1992; e mais tarde nesse ano ele foi de novo condenado, desta vez por uma rixa num bar. Valha a verdade, muitos rappers tiveram piores sentenças em tribunal e não raro até agradeceram, porque isso dava-lhes crédito de rua. Pelo que talvez não tenha sido o incidente com Dee Barnes a afastar Dre dos holofotes. Ao fim e ao cabo, este é o homem que disse, e passamos a citar, “As únicas coisas que me assustam são Deus e o IRS”.

Ou talvez se tenha cansado: no final de 1989, os N.W.A. receberam uma carta do FBI a dizer que o bureau não estava muito satisfeito com uma faixa de Straight Outta Compton, chamada Fuck tha police; dos sete álbuns que Dre produziu entre 1983 e 1992 para a Ruthless Records, sete atingiram platina. Talvez simplesmente se tenha cansado.

Certo é que o homem escondeu-se. Desde então lançou um único disco a solo, 2001 (de 1999), que voltou a vender milhões e milhões de discos. Mas desta feita não houve muitos repórteres a acompanhá-lo – do início da década de 1990 para cá, falou pouquíssimo à imprensa; na página da MTV dedicada às entrevistas com Dre salta-se de 1993 para a actualidade.

Então que é que ele andou a fazer? Bem, por várias vezes anunciou Detox, o terceiro álbum, que nunca viu a luz do dia (embora algumas faixas tenham leakado – e eram desapontantes, para sermos simpáticos). Nos bastidores, contudo, esteve muito activo: quando deixou os N.W.A. montou a Death Row Records, cujo primeiro disco foi – exactamente – The Chronic. A Death Row sacaria êxito atrás de êxito, com Dre a produzir: tanto Snoop Dog como os Blackstreet venderam balúrdios. Tupac Shakur, a mesma coisa.

Súmula
A Death Row era uma editora embebida em violência – e talvez seja essa a razão da reclusão de Dre, que foi ficando cada vez mais na sombra de Suge Knight, o outro dono. Reparem na ironia: no início deste ano, Suge Knight foi acusado de homicídio – apareceu no set de Straight Out of Compton (o filme), zangado por não receber tusto da película, consta que houve uma troca de tiros e depois o antigo dono da Death Row (que faliu em 2006) atropelou um par de homens e fugiu. À Holywood Reporter, Dre disse apenas: “Talvez ele estivesse à procura de sarilhos”.

Na década de 1990 Suge ainda não estava preso e a única opção de Dre era sair da Death Row; em 1996 formou outra editora, a Aftermath. A lista de artistas da Aftermath é impressionante: Dre descobriu e produziu Eminem, 50 Cent (que entretanto saiu), Busta Rhymes, The Game, Kendrik Lamar, entre outros.

Das poucas vezes que se ouvia falar em Dre, o dinheiro era o assunto, à medida que ia entrando e saindo da lista dos mais ricos da Forbes. Em 2002 só ficou atrás dos U2 na lista dos músicos que mais dinheiro fizeram naquele ano. De onde vinha a massa? Bem, 35 milhões resultaram da venda de um terço da Aftermath à Interscope; um par de milhões resultaram de Familly Affair, tema que compôs para Mary J Blige. No total, só nesse ano, Dre enfiara ao bolso 50 milhões de euros.

Para o leitor perceber como Dre é o mestre das sombras faça o seguinte exercício: vá ao Allmusic Guide (allmusic.com), escreva Dr. Dre na busca, e depois clique na discografia do homem: vai encontrar quatro disco, um dos quais é uma compilação de apresentação da Aftermath. Depois clique em Credits – isto é: todo o pedaço de música que tem a assinatura legal de Dr Dre. É preciso muito scroll-down para ler a lista completa, que inclui milhentas produções, de Eminem e 50 Cent, claro, mas também de Snoop Dog, 2Pac, Mobb Deep, Nas, Gwen Stefani, Blacksterret, The Game, Kendrick Lamar ou até mesmo Nine Inch Nails.

As carreiras de Snoop Dog ou de Kendrick Lamar não existiriam sem Dre, mas não é isso que importa agora, antes a sua inteligência a manipular cordelinhos: Doggystyle, a estreia de Snoop Dog, produzida por Dre, saiu meses depois de Chronic – vendeu seis milhões de exemplares, numa manifestação de astúcia por parte de Dre: apresenta o rapper no seu disco de estreia e depois produz e lança o rapper, que já tem – por via da participação em The Chronic – toda a publicidade do mundo.

Nas sombras havia tragédia, também: Dre foi acusado de violência doméstica; e numa das últimas vezes que foi notícia, em 2008, o assunto era a morte de Andre, o seu segundo filho, por sobredose de heroína.

Desse negríssimo momento para cá Dre só foi notícia por mais um par de vezes, sempre por dinheiro: a Forbes qualificou a venda da Beats Eletronic (empresa de auscultadores e streaming que Dre criara), à Apple, como “o maior cheque que alguma vez um músico recebeu num só dia”; e este ano a mesma revista colocou-o no topo da lista dos músicos mais ricos.

Mas então porque é que Compton nos interessa tanto? Talvez porque esperássemos Detox e porque desde que se menciona a possibilidade da existência de Detox deu-se a morte de Andre – talvez esperássemos que Detox fosse mais um daqueles momentos em Dre saísse da sua cave escura e nos deixasse olhar ou para a sua intimidade ou para o mundo de onde veio.

Detox, diga-se, chegou a existir: "Eu tinha entre 20 a 40 canções para Detox, disse recentemente o músico à revista Rolling Stone, “mas algo ali não batia certo. Normalmente, à medida que faço um disco, consigo sentir a sequência que vai ter, mas neste caso não consegui. Não o sentia. E cheguei a pensar que a minha carreira como artista chegara ao fim”.

É uma entrevista reveladora ou, pelo menos, tão reveladora quanto uma entrevista com Dre pode ser. Nela desmistifica, por exemplo, o mistério em redor da sua figura: “Sofro de ansiedade social”, revelava. “Não gosto de estar debaixo dos holofotes, pelo que a minha escolha de carreira é estranha. Essa é a razão para a minha mística e a razão para ser tão recolhido em mim mesmo e a razão pela qual ninguém sabe nada sobre mim”.

Ainda bem que não fez Detox Compton tem, sim, aquele lado de homem que olha para trás, sendo que consegue captar todas as qualidades de produção que Dre tinha em Chronic e ainda expandir o som (chega a haver piano e metais). Volta a ser político, numa faixa como Animals em que, tal como antes, aponta as luzes a um debutante que sai por cima – atentem neste Anderson .Paak, por favor. E se já se esperava que Compton estivesse rechado de estrelas, note-se que o talento de produção de Dre faz com gente cujas carreiras já conheceram melhores dias – Eminem em Medicine man, Snoop em One shot, one kill – volte a soar fresca. Quanto à participação de Kendrick Lamar, é avançar até Genocide para uma grande, grande faixa.

Uma vez Dre disse que quando pensava no futuro olhava para Quincy Jones “como inspiração”: “Ele só fez o seu melhor disco, Thriller, quando já tinha 50 anos”. Compton pode não ser o melhor disco de Dre, mas como súmula de um som não tem muitos defeitos que se lhe apontem.

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