Reflexões de um insensato

A língua, para muita gente, é como um gato fofo que se leva ao colo, afagando-se-lhe docemente o pêlo até ao momento em que é largado no chão e deixado à sua sorte. Pois bem, talvez inquietas com tal miragem de abandono, algumas figuras públicas têm vindo a fazer apelos em prol da língua portuguesa, espalhada pelos cinco continentes. O ministro da Cultura do Brasil, sociólogo, foi um dos mais recentes. “Convoquemos a todos para a montagem de uma estratégia planetária para a língua portuguesa”, escreveu ele no PÚBLICO de 3 de Agosto. “Pensemos globalmente”. Ora neste “pensar globalmente”, ele não tem dúvidas de uma coisa: “É claro que precisamos de uma ortografia uniformizada. É insensato não crer na necessidade de um acordo ortográfico. Possíveis erros de condução não diminuem sua importância, e o que representa para o fortalecimento da língua no contexto global.” Sendo esta uma velha história, e sendo eu, por natureza, um assumido “insensato” na matéria, deixo aqui, por utilidade, algumas reflexões avulsas.

Um aluno que aprenda português, consoante o faça em Lisboa e Porto ou no Rio e em São Paulo, aprenderá, sempre, um português diferente: pelo vocabulário, pela sintaxe, pela estrutura frásica. Isto nenhum acordo resolverá. Peguemos, por exemplo, no livro de Anthony Doerr que recebeu o Pulitzer de 2015, Toda A Luz Que Não Podemos Ver. Editado em Portugal pela Presença, foi nele aplicado o Acordo Ortográfico de 1990, transformando, por exemplo, receptor e transceptor (palavras ainda válidas na ortografia do Brasil) em “recetor” e “transcetor”. No entanto, jamais esta edição seria consentida no mercado brasileiro (excepto por importação). Porque o ritmo das falas, a estrutura das frases, são marcadamente de Portugal. No Brasil, traduzindo do inglês americano (como este foi) o conteúdo do livro seria (é-o, decerto) muito diferente. A mesma língua, duas variantes distintas. Segundo exemplo: no artigo da Presidente brasileira Dilma Rousseff a propósito dos Jogos Olímpicos de 2016 no Brasil (PÚBLICO, 5 de Agosto), saltam à vista vários termos que nenhum acordo resolverá: “maior festa do esporte”, “Copa do Mundo”, “centros esportivos”, “linha de metrô”, “complexo esportivo”, “handebol”, “comitê”, “econômico”, etc. Se o texto tivesse sido escrito por um português, leríamos “maior festa do desporto”, “Mundial de Futebol”, “centros desportivos”, “linha do metro”, “complexo desportivo”, “andebol”, “comité”, “económico”, etc. Algum acordo ortográfico resolverá isto? Nunca. A mesma língua, duas variantes distintas. Quer isto dizer que, se houver alguma “estratégia planetária” para a língua portuguesa, ela só pode passar pela aceitação desta evidência: a riqueza do Português é a sua diversidade linguística, nacional e regional, os seus distintos vocábulos, as suas falas e sons, a sua vida múltipla; não a falsa unidade da sua grafia, unidade que continua a não existir nem existirá jamais. Insistir nisso é o mesmo que tentar aplainar a Terra para que as montanhas desçam ao nível das planícies e o chão seja… “unificado”.

Mas se os clamores pela língua se repetem numa vã retórica, quando a sua defesa passa à prática até os seus mais bravos “defensores” vacilam. Veja-se, por exemplo, o que se passa com a chamada “patente europeia de efeito unitário”, onde se pretende erigir como línguas-padrão o Alemão, o Francês e o Inglês, pondo de parte todas as outras línguas da UE (Português incluído), em clara violação dos tratados europeus, sobretudo o da paridade linguística. Pois quer o Governo português quer a Assembleia da República (por voto maioritário) acharam por bem que tal desaforo fosse adiante, estando agora nas mãos do Presidente da República a decisão final.

Uma língua de cultura, de negócios, a quinta mais falada do Globo? Provem-no! O acordo ortográfico nem sequer é para aqui chamado, para este efeito é indiferente. O que conta é a capacidade de manter a cabeça erguida ou, infamemente, baixá-la diante de “superiores interesses” internacionais. Uma estratégia global para a língua? Deixar de lado a retórica e a cobardia. Fazer como os ingleses, que, mesmo com dezoito variantes ortográficas aceites, jamais vacilam na defesa e consagração do seu idioma.

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