Turandot ou a repugnância extrema pelo sexo masculino

Teatro Nacional São João acolhe primeira encenação teatral em Portugal da peça de Carlo Gozzi que deu origem à famosa ópera de Puccini.

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Joana Carvalho é a Turandot Diogo Baptista
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O espectáculo assume a tradição da commedia dell'arte Diogo Baptista
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A figura da Turandot é inspirada numa personagem histórica Diogo Baptista
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O espectáculo assume a tradição da commedia dell'arte Diogo Baptista
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O príncipe Calaf é interpretado por Pedro Frias Diogo Baptista

Conhecemos a personagem principalmente pela ópera homónima de Puccini e, ao que parece, a peça de teatro que esteve na sua origem, escrita em 1762 por Carlo Gozzi, não chegara ainda aos palcos do teatro português. Até esta quinta-feira, dia em que Turandot se estreia no Teatro Nacional São João, com encenação de João Cardoso, numa co-produção com a Assédio, Teatro do Bolhão e uma companhia nova do Porto, Numa Norma.

Do imaginário da ópera de Puccini – que contém uma das mais belas e famosas árias da história do bel canto, Nessun dorma –, a presente produção traz-nos apenas os figurinos de época, numa mistura da commedia dell’arte italiana do século XVIII com o imaginário ancestral da China imperial. Mas enquadrados num cenário cru e minimalista, quase sempre sobre um fundo negro.

“Na Assédio, uma companhia principalmente virada para as dramaturgias contemporâneas, temos um entendimento plástico dos cenários muito depurados”, diz João Cardoso ao PÚBLICO, antes de um dos últimos ensaios gerais anteriores à estreia. O encenador acrescenta que esse contraste entre os cenários e os figurinos lhe permite “estabelecer também um paralelo com as contradições do próprio texto e da colagem que Carlo Gozzi [1720-1806] faz das figuras da commedia dell’arte com uma história trágica situada na China”.

Mas vamos ao essencial dessa história: Turandot – personagem alegadamente inspirada numa figura real do século XIII/XIV, Khutulun, trineta de Ghenghis Khan – é a filha do imperador que, na sequência de um acontecimento traumático observado na infância, ganhou uma repugnância extrema pelo sexo masculino. Por essa razão, recusa-se a casar, como lhe pede o pai. E consegue mesmo que este promulgue um édito que obriga todos os seus pretendentes a sujeitar-se a resolver três enigmas. Quem não acertar na resposta, é decapitado…

Num cenário com um fundo vermelho vivo, a evocar o sangue já derramado por um número indeterminado de pretendentes, a intransigência de Turandot é finalmente desafiada pela coragem e atrevimento de Calaf – “Quero morrer ou casar com Turandot”, diz –, um príncipe desconhecido perante quem a princesa irá vacilar…

A encenação teatral do texto de Carlo Gozzi é um projecto que João Cardoso acalentava fazer desde há quase três décadas, quando, em 1988, como actor fundador d’Os Comediantes, tinha entrado no elenco de outra peça do dramaturgo veneziano, O Pássaro Verde, encenação de João Paulo Costa, após uma outra aventura com o teatro do século XVIII, O Jogo do Amor e do Acaso, de Marivaux (1986).

As dificuldades por que passou a cena teatral portuense ao longo da década de 90 impediram a concretização do projecto. Algo que agora foi tornado possível sob a chancela da Assédio, com o apoio, “e a cumplicidade”, acrescenta o encenador, do TNSJ.

Este episódico regresso da Assédio ao teatro clássico permitiu a João Cardoso – que além de encenador interpreta também o papel do imperador, Altum – trabalhar uma abordagem que lhe agrada especialmente. “O Carlo Gozzi põe em confronto personagens trágicas com outras eminentemente cómicas, como as máscaras italianas da commedia dell’arte. É um confronto complicado, sempre no fio da navalha, mas foi isso mesmo que mais me seduziu”, diz o encenador.

Sobre a relação com o imaginário da ópera inevitavelmente colado à personagem da Turandot, João Cardoso lembra que a versão de Puccini, feita a partir de uma adaptação de Schiller, “tem uma componente mais trágica”, que praticamente termina com a morte da rival da princesa, enquanto “o texto de teatro tem quase um happy end”. “É precisamente esse frente-a-frente da paixão real da rival da Turandot com a leviandade desta que me interessa pôr em confronto, e deixar a questão em aberto para o espectador”, nota.

A actriz que interpreta Turandot é Joana Carvalho, que tem aqui a sua terceira experiência de trabalho com a Assédio e João Cardoso, depois de no ano passado ter participado em Fly me to the moon, de Marie Jones, e O Feio, de Marius von Mayenburg.

Turandot aparece pela primeira vez em palco enquadrada num trono de luz: “Príncipe, deveis desistir desta empresa fatal. Deus sabe que a minha afamada crueldade não é verdadeira. É a repugnância extrema que sinto pelo sexo masculino que me obriga a resistir, como sei e posso: quero viver longe de um sexo a que sou adversa”, declara. Mas progressivamente vai cedendo… ao amor.

“O grande interessa desta personagem está no conflito que ela vai vivendo ao longo da peça, entre esse fervor por ser livre e dona do seu destino, não se querendo ligar a nenhum homem, e depois, quando vê o príncipe, sentir-se a enfraquecer e a apaixonar-se”, diz Joana Carvalho, acrescentado que a principal dificuldade na construção da personagem foi libertar-se “da géstica mais quotidiana, para tentar chegar à natureza mais fria e mais dura” de Turandot.

Turandot vai ficar em cena no Teatro São João até 11 de Outubro. Durante este tempo, alguns elementos da equipa, como o actor Paulo Calatré, ou o artista plástico Cristóvão Neto, vão orientar oficinas de construção e de trabalho com máscaras, como aquelas do mundo da commedia dell’arte que pontuam a peça.

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