Quem é Roth?, pergunta Roth

Sobre Philip Roth já se escreveu quase tudo. Mas quando é Roth a escrever sobre Roth sem o filtro da imaginação, a curiosidade aumenta. Um livro sobre os bastidores do eu criativo

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Os Factos é um livro de convalescença: Philip Roth a reagir a um esgotamento nervoso

O exercício é ambicioso. Escrever sobre si próprio de forma factual, esquecendo tudo o que já escreveu sobre si mesmo de modo ficcional.

Temos um escritor que levou a autobiografia para a ficção e que agora quer limpá-la de toda a imaginação e apresentá-la tal qual a viveu. “… parece que desta vez me deu para escrever um livro absolutamente ao contrário, pegando naquilo que já imaginei e, por assim dizer, dissecando-o, para assim devolver a minha experiência à sua actualidade original pré-ficcionalizada. Para quê?”. A pergunta serve para explicar uma exposição entre “um mailorismo agressivamente exibicionista” e “um salingerismo de clausura” — e a confissão precisou de se tornar visível para si próprio sem os disfarces da ficção de que sempre se socorreu para o que espelho lhe devolvesse uma imagem amestrada.

Em Os Factos, Autobiografia de Um Romancista (1988), Philip Roth (Newark, 1933) pretende-se nu de preconceitos numa reacção ao esgotamento nervoso que sofreu em 1987. Para provar que existe um fosso importante entre esse eu e o escritor autobiográfico que criou. Estamos perante uma resposta terapêutica. “Foi no período pós meditação, com a clareza que acompanha a remissão de uma doença, que comecei, de modo perfeitamente involuntário, a concentrar praticamente toda a minha atenção vígil em mundos de que vivia afastado há décadas — recordando o ponto de onde tinha partido e a forma como tudo tinha começado.”

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Num género híbrido, em que sobressai o confessional, Roth cruza o que podem ser considerados os seus anos de formação com os primeiros livros marcados pela presença da biografia do autor, no que viria, aliás, a ser um dos traços mais marcantes da sua obra. O judaísmo, a geografia, a sexualidade, a doença e o egocentrismo que assume especial relevância na criação do alter-ego Nathan Zuckerman são aqui apresentados “em estado bruto”. É a Zuckermann, personagem criada em The Ghost Writer (1979), que Roth submete o manuscrito, logo no prólogo — a personagem virá a responder-lhe na última parte do livro. Mesmo quando diz dispensar a imaginação, Roth não se livra dela, sobretudo nesse texto final em que ensaia uma crítica ao seu próprio livro.

Não estamos perante uma autobiografia convencional, mas perante um livro que serve de pauta para ler o escritor e muitas das suas opções, muitos dos seus fantasmas, muitas das suas personagens. Como Josie (o verdadeiro nome é Margaret Martinson), a primeira mulher, uma “gentia” que conhece durante a sua passagem por Chicago e que surge num retrato perturbado e manipulado, inspiração para Lucy Nelson, de When She Was God (1967). “Não há dúvida de que ela foi o meu pior inimigo de sempre mas, tenho de reconhecer, foi também o mais espantoso de todos os meus professores de escrita criativa, especialista por excelência em estética da ficção extremista.” A opção de não revelar o nome de Margaret, como de outras pessoas, justifica-a com uma ideia de “protecção”. Mas até que ponto uma exposição sem a edição do romancista faz parte das regras? É uma pergunta que permanece enquanto Roth vai revelando o conflito gerado na comunidade judaica por Goodbye Columbus (1959), ou a rotina do bairro de judeus de classe média onde cresceu e que o moldou.

Esse ambiente está em O Complexo de Portnoy (1969), o primeiro grande sucesso do escritor que à data da publicação deste Os Factos tinha 55 anos e estava num dos pontos altos de uma carreira que hoje vai já em 14 romances publicados, quatro dos quais da série Zuckerman. Roth sugere que o tema deste livro é “como nasceu um escritor”, partindo para a auto-análise com base no que faz. É Zuckerman quem o alerta para isso num dos momentos mais brilhantes deste livro em que a verdade é sempre um jogo de escondidas: quando Roth lê Roth através da sua imaginação, como um neurótico que se expõe. Tudo para recuperar o “eu” verdadeiro acerca do qual ele perdeu certezas, mas que anda pela sua ficção. “Na autobiografia”, escreve-lhe Zuckerman, “há sempre outro texto, um contratexto, se quiseres, relativamente ao que é apresentado. Ela é provavelmente a mais manipuladora de todas as formas biográficas.” E que mais pode pedir o leitor do que ser vítima de uma boa manipulação?

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