O fado de Carminho sem truques nem convidados

No dia em que se comemora o fado como Património Mundial, Carminho sobe ao palco do Campo Pequeno, em Lisboa, para mostrar o seu terceiro álbum, Canto, em ponto de maturação.

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"Quero fazer um concerto no melhor de mim, no melhor da minha banda", diz Carminho Leo Aversa

De cada vez que um músico ou grupo nacional actua numa das grandes salas do país, numa data que entende ser de celebração, prepara um concerto com convidados especiais (outros cantores, outros instrumentistas), uma cenografia diferente, um alinhamento pontuado por algumas escolhas surpreendentes ou arranjos inesperados. Tudo para sublinhar a ideia de que uma noite única não deve ter outra possibilidade senão sê-lo de facto pelas próprias características do espectáculo. Ora a passagem de Carminho pelo Campo Pequeno, em Lisboa, esta sexta-feira, contraria todas estas regras tácitas.

“Eu quero dar exactamente aquilo que tenho amadurecido, não quero trazer aquilo que é verde”, diz ao PÚBLICO. “Quero fazer um concerto no melhor de mim, no melhor da minha banda – que está melhor do que nunca – e com um concerto muito maduro e muito eficaz. São essas emoções que temos vivido nos palcos ao longo deste ano que queremos devolver a Lisboa.” Em vez de experiências fugazes, Carminho aposta, assim, na rodagem ao vivo de Canto, o seu terceiro álbum, recém-galardoado como disco de platina (por vendas superiores a 15 mil unidades), no exacto dia em que se comemoram quatro anos sobre a distinção atribuída pela UNESCO ao fado como Património Mundial Imaterial da Humanidade.

Acabada de regressar de uma pequena digressão nos Estados Unidos e no Canadá, partilhada com Sara Tavares – “foi muito bonito, partilhámos bastante as nossas perspectivas musicais, artísticas e pessoais, cantámos juntas nos concertos uma da outra”, conta –, a fadista mal tem tempo para desfazer as malas. Nada de novo ou de que se queixe. A ocasião é de celebração e de um certo ritual que Carminho gosta de cumprir: mostrar à cidade que a “viu nascer, crescer e ajuda sempre a prosseguir” cada disco no ponto de maturação que só a estrada pode oferecer. Toma, por isso, a forma de um agradecimento misturado com o orgulho do ponto a que chegou com este reportório.

A escolha do Campo Pequeno para esta apresentação não se esgota na ideia de cantar em mais uma sala emblemática de Lisboa. Para Carminho, importa que seja uma sala no coração da cidade “com que os lisboetas convivem diariamente, frequentando ou não a solenidade daquele lugar bastante imponente”. E já na sua essencial História do Fado, Pinto de Carvalho (Tinop) falava do Campo Pequeno, em meados do século XIX, como um “sítio onde se fadejava com facúndia (...) nas noitadas das esperas dos toiros”. Por lá terá então cantado a mítica Severa.

Vida no palco
Um ano depois da edição de Canto, o álbum mantém-se ainda bem vivo para Carminho. Não se conclua então que o marco desta actuação no Campo Pequeno pretende fechar um qualquer ciclo. Os ciclos, acredita a fadista, são naturalmente definidos por cada disco e ainda não está na altura de avançar para o próximo. “O caminho faz-se caminhando”, cita a cantora. E isso é válido, em primeiro lugar, para a transformação que o reportório vai sofrendo. “Apesar de ter uma grande preocupação de escolher os temas que me identificam”, diz, “quando eles começam a ganhar vida em cima do palco há alguns que ganham mais força dentro de mim, na vontade de os interpretar, e outros que se vão alterando porque nós também nos vamos alterando. A vida muda-nos e vamos sempre querendo dizer ao mundo e falar sobre aquilo que nos é mais natural.”

Assim, em cada momento, em cada noite que desfia o seu fado diante de uma plateia, Carminho procura sintonizar-se com o momento ou com a fase que vive, a bem de uma autenticidade que entender ser não apenas inevitável, mas também a única forma de garantir que está inteira em palco.

Em paralelo, todo esse percurso feito com os concertos vai-lhe permitindo entrever o futuro e descortinar o horizonte do álbum seguinte. “Cada passo que se dá é realmente uma descoberta”, reconhece. “É como quando estamos a fazer uma caminhada por algum lugar para onde nunca fomos antes. E às vezes encontramos entroncamentos e temos de tomar decisões – delineadas exactamente pelo percurso que nos levou até ali, pelas influências, pelas pessoas com quem se colaborou, outros músicos, essas parcerias que são sempre de uma importância enorme para um artista. É o mundo que nos vai definindo e encaminhando para todas as nossas próximas escolhas.”

É natural que essas escolhas venham a reforçar a crescente ligação de Carminho à MPB (Música Popular Brasileira). Elegendo o Brasil como “um destino natural” pela partilha da língua, Carminho diz-se encantada pelo “mar de possibilidades” oferecido pelo acesso fácil a poemas e músicas vindos do outro lado do Atlântico. Depois de ter cantado com grandes ídolos como Chico Buarque e Milton Nascimento, Carminho confessa que quer “estar sempre ao pé deles, toda a vida”. “Não me quero separar deles nunca”, reafirma. Este ano, gravou também com Caetano Veloso o tema Naufrágio para o álbum Amália – As Vozes do Fado, depois de já em Canto ter partilhado Chuva no Mar com Marisa Monte.

Só que há outras pistas que prometem vir a gerar novos frutos. Andorinha, o primeiro tema em que assina letra e música, anuncia, talvez, que se avizinha uma marca autoral mais carregada nos seus discos. Serão essas as eventuais deixas para o futuro que o Campo Pequeno poderá deixar no ar. Ainda assim, este é um concerto que serve sobretudo para percebermos quem Carminho é hoje.

 

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