Quando o público não deixa acabar o espectáculo

Morceau de Bravoure, proposta da companhia Cão Solteiro e de André Godinho para a Companhia Nacional de Bailado, parte da situação em que a ovação final não cessa e não deixa os artistas retirar-se de cena.

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Morceau de Bravoure Joana Dilão
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E se, no final de um espectáculo, o coro de aclamação vindo do público, entre aplausos eufóricos e profusos gritos de “bravo!”, prometesse não se extinguir? E se o entusiasmo fosse tal que os intérpretes, agradecendo a reacção do público ficassem, afinal, presos ao palco, sem dele poderem sair para não desrespeitar a plateia? E se, de tanta insistência nas palmas, os artistas se vissem obrigados a ser mais explícitos nos agradecimentos ou a fazer pequenos encores, não tanto para recompensar a ovação, mas antes como forma desesperada de quebrar um ciclo aparentemente interminável? E se este acto de amor para aqueles que ocupam o palco se transformasse, afinal, numa acção violenta?

É destas interrogações que parte Morceau de Bravoure, espectáculo criado pela companhia de teatro Cão Solteiro com o seu habitual parceiro André Godinho, e com a participação do coreógrafo Rui Lopes Graça, para a Companhia Nacional de Bailado (CNB).

A resposta estará em cena no Teatro Camões, em Lisboa, desta quinta-feira até ao dia 22 de Novembro, e era há muito uma ideia que a companhia de teatro pretendia explorar. Desde que, há aproximadamente dez anos, terminaram uma peça desaparecendo através de “um nevoeiro muito denso que depois se dissipava e ficava apenas a sala”, descreve Paula Sá Nogueira, fundadora do Cão Solteiro, a convenção do agradecimento começou a ser questionada no grupo. Há muito, de facto, que começou a circular internamente a ideia de que chegaria o dia em que uma das suas criações concentraria todos os agradecimentos e os elevaria a centro do espectáculo. Esse dia chegou com a proposta da directora artística da CNB, Luísa Taveira, para trabalharem com o corpo de ballet da casa.

“Esta é a vossa possibilidade de avançar com a ideia”, disse-lhes André Godinho. “Por um lado, havia o acesso a um elenco grande; por outro, dentro do ballet clássico existe toda uma coreografia do agradecimento, uma hierarquia, em que os bailarinos vêm agradecer em personagem.” Se aqui era relativamente fácil identificar o arranque para Morceau de Bravoure, em seguida bailarinos e actores deveriam enlear-se na “tentativa de pôr um ponto de final na situação mas em que cada ponto final produz mais palmas e produz, assim, reticências que necessitam de um outro ponto final”, resume Godinho.

Um espectáculo que já foi

Há, assim, um espectáculo que se constrói no pressuposto de que o espectáculo já terminou. E que, portanto, ao assistirmos à ultrapassagem clara do tempo convencionado para agradecimentos perante uma ovação pré-gravada, estes resvalam para o absurdo de quem, temos de imaginar, está em palco lidando com o cansaço do final de uma peça e anseia pelo recolhimento.

É neste contexto que assistimos a um actor que recorre a frases feitas como “não fui eu que escolhi este ofício, mas este ofício que me escolheu”, para logo em seguida se descontrolar e reconhecer a sua dívida para com Carl Sagan e Arthur C. Clarke (pela visão do mundo) ou Isabelinha (pelo primeiro beijo), mais o oftalmologista ou o professor do Conservatório. E como, falhando neste propósito, não silencia os aplausos, lança-se ainda no monólogo de abertura de Ricardo III, de Shakespeare.

O texto em si de Ricardo III é irrelevante. A escolha prende-se, sobretudo, com a selecção de “um conjunto de situações que são aquelas que se pensa que o espectador gosta ou considera boas – são mesmo morceaux de bravoure”, esclarece Paula Sá Nogueira. E isto porque morceau de bravoure é uma expressão que designa um momento de especial virtuosismo, de audácia ou de génio que o público habitualmente recompensa com uma irrupção de aplausos. Ideias que o Cão Solteiro considera “primárias e antigas” mas que enformam um gosto popular e uma expectativa em relação ao que define um bom desempenho dramático ou bailado. São, bem vistas as coisas, interpretações assentes numa espectacularidade algo histriónica, “numa lógica de exibição de uma habilidade, mais do que a comunicação de uma ideia”, diz Sá Nogueira.

A vaidade dos intérpretes faz, por isso, também parte da equação. Uma equação naturalmente em aberto. Após hora e meia de provocação e de hipótese teórica transformada em proposta artística, também este espectáculo que parte de um fim do espectáculo termina a sua apresentação. E se, nessa altura, o coro de aclamação vindo do público, entre aplausos eufóricos e profusos gritos de “bravo!”, prometer não se extinguir?

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