Monumentos em série para um luto em massa

Portugal deixou uma escultura em França em homenagem aos soldados mortos na guerra de 1914-1918. Mas a corrida à construção de monumentos após os combates foi mais industrial do que artística. Escolhia-se que obra erguer no município por catálogo.

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“Após a guerra, quase todas as cidades e vilas de França tinham vítimas e queriam homenagear os seus mortos. Este movimento de construção de monumentos aos mortos deu-se logo nos anos 1920, 1925”, explica Claire Garcia, historiadora de arte da Escola do Louvre, em Paris, que se dedicou a estudar esteticamente os monumentos construídos após a I Guerra Mundial em França e divulgou o seu trabalho no site das comemorações do centenário da guerra (http://centenaire.org ).

Pelo menos dois terços da sociedade francesa estava em luto, estimam os historiadores Annette Becker e Stéphane Audoin-Rouzeau no livro 14-18, retrouver la Guerre (Folio). E era um luto por mortes de uma violência sem precedentes: mortes de jovens, com mutilações nunca vistas, desaparecidos”, sublinham os investigadores do Museu Memorial de Péronne, na zona dos campos de batalha do Somme.

O trauma era enorme, e não apenas em França. O historiador norte-americano Jay Winter, da Universidade Yale e do Museu Memorial de Pérone, refere-se a este fenómeno como “um boom da memória, uma vaga comemorativa universal que participou do processo de luto das sociedades”.

O luto era ainda mais dificultado porque cerca de metade dos corpos simplesmente desapareceram nesta guerra em que os fragmentos das explosões dos mais potentes obuses podiam cortar homens ao meio instantaneamente. É a mesma proporção de desaparecidos que houve no atentado do World Trade Center em Nova Iorque a 11 de Setembro de 2001, notou Winter à agência AFP.

Mas a construção de monumentos exige muito dinheiro – mármore, granito, bronze, folha de ouro, sem falar na mão-de-obra e na concepção do artista, tudo isso tem de ser pago a bom preço, sublinha Claire Garcia, que trabalha a dois passos da pirâmide de vidro do Museu do Louvre, em Paris. “Por isso nem todas as comunas podiam pagar um monumento esculpido. O mais simples e mais comum que se encontra é um obelisco onde estão inscritos os nomes dos habitantes locais mortos e alguns símbolos”, explica.

Estes podem multiplicar-se por dois, ou três, porque há também placas evocativas em edifícios religiosos, como igrejas, sinagogas e outros templos, em universidades, empresas públicas e privadas, que recordam os seus mortos. No edifício sede da Agência France Presse, em Paris, por exemplo, uma placa em mármore recorda o nome dos jornalistas e outros funcionários da Agência Havas – que depois se tornou na AFP – mortos na I Guerra Mundial.

No total, só em França poderão ser 100 mil os monumentos aos mortos da I Guerra, contando com estas iniciativas, diz a historiadora Annette Becker, também associada ao Memorial de Péronne. Foram construídos em cerca de 15 anos, facilitados pela publicação de uma série de leis, entre 1919 e 1925, que definiram a forma como o Estado laico e republicano apoiou esta nova espécie de culto aos mortos, como notam os historiadores.

“O tipo de monumento a construir dependia do dinheiro que conseguissem angariar nos municípios, com subscrições públicas ou donativos. O Estado não tinha obrigação de construir monumentos de homenagem aos mortos, mas atribuía subvenções, por vezes até pagava os monumentos.”

Repetida 900 vezes

Para os municípios que tinham meios para algo mais do que um simples obelisco, mas que não conseguiam pagar um projecto próprio, havia outra possibilidade: os monumentos em série, a forma perfeita de homenagear uma guerra em que a morte foi massificada. “Alguns artistas criaram modelos que foram comprados por fundições e empresas de mármores que vendiam estas esculturas às comunas por”, conta Claire Garcia.

“Le Poilu victorieux”, de Eugène Benet, que retrata um soldado francês com uma coroa de louros e uma palma erguida acima da cabeça numa mão e, na outra, uma espingarda, terá sido erguido em 900 locais – é o monumento mais reproduzido em França, tão replicado como uma fotocópia. “É por isso que temos a impressão de estar sempre a ver o mesmo. Estas obras eram vendidas por catálogo, com um mínimo de modificações”, explica a historiadora de arte.

“Devem-se a quatro escultores, hoje ilustres desconhecidos, a repetição de um certo número de modelos por todo o território francês”, explica Claire Garcia. Além de Benet, há Étienne Camus (um soldado em pé, apoiado na sua espingarda), Henri-Charles Pourquet (um soldado com capacete, em pé, apoiado na espingarda ou então de arma na mão) e Jules Dechin (um soldado deitado e já moribundo). Os monumentos eram vendidos por empresas como os Mármores Gerais Gourdon, a Sociedade Rombaux-Roland ou pelas fundições Val d’Osne e Durenne.

Alguns destes escultores conseguiram ter algumas encomendas na época, mas não tinham outra notoriedade para além de estarem incluídos num catálogo de monumentos aos mortos, que eram até divulgados em panfletos publicitários. Eugène Benet, com as 900 reproduções do seu soldado vitorioso, não é um escultor famoso pela sua obra. Só se distingue por este recorde.

“Logo que fizeram estes modelos para catálogos caíram no esquecimento. Terão cedido os direitos sobre as suas obras às empresas – os lucros da venda dos monumentos iriam para as empresas que os vendiam, e não para eles. Não existia o direito de autor na época tal como o entendemos hoje”, explica Garcia.

No entanto, fizeram-se obras originais e, como não poderia deixar de ser, o Governo francês não deixou as homenagens aos heróis apenas nas mãos do poder local. Também fez encomendas – por exemplo, os ‘Fantasmas’, a Paul Landowski, escultor que assinou 80 obras de homenagem aos mortos da Grande Guerra. Trata-se de uma estátua monumental, de vários soldados, que evoca os desaparecidos em combate, erguida na colina de Chalmont, local onde se considera que se inverteu a sorte da segunda batalha do Marne, em Março de 1918. Landowski foi co-autor do Cristo Rei do Rio de Janeiro.

Teixeira Lopes esquecido

Portugal deixou também um monumento aos mortos da Grande Guerra em França, que ofereceu ao município de La Couture, um dos locais onde decorreu a batalha nas margens do rio La Lys, em 1918. Mas em Portugal esta escultura monumental parece ter desaparecido da lista de obras de António Teixeira Lopes, o escultor de Vila Nova de Gaia que estudou nas Belas Artes de Paris, onde ganhou vários prémios, e conhecido por peças como a escultura de Eça de Queirós no Largo Barão de Quintela em Lisboa, “A Viúva”, que está no Museu do Chiado, também em Lisboa, e, no Porto, “Flora”, no Jardim da Cordoaria, e “Dor”, nos Jardins do Palácio de Cristal.

Inaugurado em 1928, o monumento é quase mais alto do que o edifício da igreja, em tijoleira vermelha, típico desta região da Flandres francesa. Mas nada neste monumento é típico: se os soldados dos monumentos franceses costumam ter um ar impassível ou vitorioso, glorificando a morte ou saudando a vitória, o português aqui representado tem uma máscara de puro terror no rosto. O seu inimigo é a própria morte, que enfrenta à força de coronhadas e não de balas. Atrás de si, uma figura feminina, que representa Portugal, empunha a espada de Nun’Álvares Pereira, para o ajudar no combate desigual. A seus pés, muitos destroços.

O que espanta é que tudo indica que se trata de um monumento à derrota, e não a uma vitória – o esqueleto da morte, com a gadanha, parece pronto a ceifar o soldado, mesmo com a ajuda da espada do Condestável que noutros tempos combateu os castelhanos.

Alguns monumentos construídos após a I Guerra tinham um carácter pacifista – se é que é essa a mensagem que se pode levar deste monumento português de La Couture –, mas a maioria exaltava o sacrifício supremo dos que deram a sua vida na guerra patriótica. O monumento português desconcerta. Tem uma leitura bastante mais próxima da que fazemos hoje da guerra, quando confessamos a nossa incapacidade contemporânea para compreender os dez milhões de mortos provocados directamente pelos combates.

Não houve grandes ousadias estéticas nem interpretativas nesta possante vaga comemorativa pós-guerra, nota Claire Garcia. “Ocorreram várias revoluções estéticas e artísticas no decurso da I Guerra, como o cubismo e o futurismo. Mas na homenagem aos mortos, há sobretudo uma necessidade de identificação. No período entre as duas guerras foi difícil romper com este princípio”, sustenta.

“As únicas soluções toleradas foram de ordem iconográfica, em caso algum evoluções que questionassem os fundamentos da estatuária”, diz Garcia, citando o artigo que ela própria escreveu e divulgou no site da Missão do Centenário. As representações eram limpas dos horrores do campo de batalha: sem lama, sem corpos despedaçados, raras vezes com armas. Os obuses, quando surgem, são elementos decorativos, rodeiam o perímetro da estátua.

Nem os artistas da “avant-garde” se interessavam pelo movimento comemorativo em massa, nem os que queriam comemorar o fim da guerra e homenagear os soldados mortos, fazer o luto da sociedade, falavam ou compreendiam a linguagem das vanguardas.

Paul Vitry, curador de Escultura no Museu do Louvre, exasperado, chamou “poilus frenéticos” aos monumentos que eram construídos em série, numa crítica na revista “Art et Décoration”, publicada em 1922. O desejo de celebrar os mortos da Grande Guerra secundarizou o valor estético e o carácter original das obras, numa sociedade ansiosa por pôr em palco o seu luto.

Na grande festa da vitória que foi o 14 de Julho de 1919 – com um grande desfile militar numa Paris engalanada de faixas e bandeiras tricolores para uma festa de arromba, em que participaram dois milhões de cidadãos – os mortos estiveram também presentes. Junto ao Arco do Triunfo, havia um monumento efémero que os evocava, um enorme cenotáfio com 17,5 metros de altura, oito de largura e 30 toneladas, com quatro enormes vitórias aladas e pinturas em dourado, que se deslocava sobre rodas.

Era como um enorme caixão vazio, cujo objectivo era simbolizar o vazio deixado pelos cerca de 1,4 milhões de mortos. Mas era um monumento efémero, em madeira e materiais não duradouros, não se destinava a perdurar. Pelas fotografias da época, faz lembrar um dos espantosos carros nos quais se desloca a rainha Cleópatra no filme clássico de Cecil B. DeMille.

Foi junto a este monumento provisório que os mortos foram recordados, numa vigília realizada na noite de 13 para 14 de Julho, antes da grande festa dos vivos. Na base deste enorme caixão, em que se esperava que coubesse toda a dor francesa, lia-se “aos mortos pela pátria”.

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Monumento aos mortos de Chaudefontaine
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A construção de monumentos exige muito dinheiro, sublinha Claire Garcia
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Monumento aos mortos de Clermont en Argonne
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Monumento aos mortos de Bethune
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