Quando a poesia europeia foi à favela e perdeu

A literatura não começa e acaba no livro, também é um jovem de boné e orelhas furadas com um microfone na mão, servindo-se à-vontade do calão do gueto. Numa batalha entre poetas, quem ganhou foi o brasileiro.

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A portuguesa Raquel Lima foi uma das finalistas da competição Francisco Costa/Flupp

Na quinta-feira à tarde, o suíço Gabriel Vetter subiu a um palco numa favela do Rio de Janeiro para dizer um poema da sua autoria. Antes dele, a norte-americana Porsha O. quase rebentara a escala de pontuação do júri com um poema que tinha o ritmo de um tiroteio, pop-pop-pop, um poema de várias rebeliões por segundo. Apesar de falar numa língua que não era a da favela, a favela viu-se ao espelho na fúria daquela mulher negra, canhões apontados contra a pobreza e o racismo. Talvez ninguém quisesse subir ao palco depois daquilo, mas calhou ser a vez do suíço Gabriel Vetter.

“Portanto... o meu poema é sobre uma salsicha”, disse em inglês, quase como se pedisse desculpa. Gabriel versejou sobre os dramas existenciais de uma salsicha suicida, traduzidos em simultâneo num ecrã atrás dele. Há uma distinta tendência humorística em muitos dos jovens praticantes de poetry slam, uma competição de poesia falada, que se exprimem em alemão – Alemanha, Suíça, Áustria... –, mas numa favela carioca a 12 horas de avião a Europa parecia uma ideia longínqua. Aquela não era uma tertúlia de poesia tradicional; era uma tribuna política, onde os poetas, à vez, atiraram problemas para cima da plateia: narcotráfico, assédio sexual, segregação, machismo, desigualdade económica.

Pelo segundo ano consecutivo, a Flupp – Festa Literária das Periferias, uma espécie de Flip das favelas, incluiu na sua programação o Rio Poetry Slam, uma competição internacional de poesia falada, com 16 participantes de países e línguas diferentes. Se o festival tem por missão alimentar aspirações literárias nas favelas cariocas, ele não tem uma visão rígida do modelo a adoptar. A Flupp tanto incentiva a presença do livro e de escritores nessas comunidades, como dá um show de uma rapper francesa. Literatura não é uma coisa que começa e acaba no livro, também é um jovem de boné e orelhas furadas com um microfone na mão, acelerando e desacelerando palavras, servindo-se à-vontade do calão do gueto. A diferença entre ele e um artista de hip-hop? Quase nada.

O poetry slam é um formato que nasceu em Chicago, nos Estados Unidos, na segunda metade da década de 1980 e que se disseminou pelo mundo inteiro. É uma competição com regras universais: os textos apresentados têm de ser de autoria própria, sem acompanhamento musical nem figurino, e cada participante tem no máximo três minutos para dizer o seu poema. A avaliação é feita por um júri popular, composto por membros da plateia, que dão uma pontuação de zero a dez, incluindo decimais. Os 16 participantes foram divididos em grupos de quatro, que passaram por eliminatórias até chegar aos quatro finalistas que disputaram a vitória, no domingo à noite.

Uma das finalistas foi a portuguesa Raquel Lima, 32 anos. “Escolhi os três melhores poemas para a primeira eliminatória, partindo do princípio que não passaria à segunda. Não tinha esperança de passar, porque estes poetas são muito performáticos e eu tenho uma poesia... não sei se se pode dizer que é muito portuguesa, mas que se preocupa mais com as palavras, com a dicção, do que com o lado físico”, diz. “Também não faço questão de fazer uma poesia interventiva como fazem aqui. Tenho uma poesia mais contemplativa, mais imparcial. Não acho que a poesia tem sempre de dizer o bem e o mal.”

Raquel Lima é coordenadora-geral do Portugal Slam, um festival que é também uma plataforma nacional das comunidades e praticantes de slam, presentes “de norte a sul, incluindo Ponta Delgada”. “O movimento slam em Portugal não é visivelmente grande, mas é grande. É underground.”

Raquel representou Portugal em competições europeias de slam em Paris e Antuérpia, mas estar numa favela trouxe questões novas. Todos os participantes do Rio Poetry Slam ficaram alojados durante quase uma semana em hostels do Morro da Babilónia, a favela onde se realizou a Flupp. 

“O facto de estarmos na favela já cria uma tensão emocional que é diferente de estar num bar ou num teatro na Europa. A probabilidade de estas pessoas nos estarem a ouvir seria mais baixa na Europa. Aqui são mais ousados na aproximação de públicos.”

Reflexões de outro europeu: “Não há problemas sociais ou políticos significativos na Holanda. A poesia lá é muito lírica, fala de amor e da beleza das flores”, diz o holandês Daan Doesborgh, 27 anos. As temáticas políticas dos outros poetas presentes no Rio Slam fizeram-no questionar-se sobre isso. “Será que temos de ter uma mensagem? Não sei a resposta. Tenho razões claras para não fazer poemas políticos. Na Holanda, a poesia não é um meio através do qual se consiga uma mudança, porque é demasiado marginal. Seria o mesmo que tricotar uma manta sobre a crise dos refugiados. Não resolve problema nenhum.”

Claro que depois da experiência de estar numa favela, ele teria coisas a dizer sobre isso a uma plateia holandesa. Mas não é o que ele quer fazer. “Não passaria de auto-congratulação moral. Seria apenas uma forma de assinalar: vejam o quanto me preocupo com este assunto, vejam como eu me interesso por causas sociais... Preferia escrever um artigo de opinião num jornal holandês. E reservar a minha arte para a estética.”

O vencedor do Rio Poetry Slam foi o brasileiro João Paiva. Que não teve de escolher entre política e estética.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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