Quando a ilustração se agiganta

Imaginou uma pequena casa, juntou-lhe um gigante com uma árvore na cabeça e acrescentou-lhe a passagem do tempo. Com cinco ilustrações, concorreu ao Catálogo Ibero-Americano de Ilustração 2014 e ganhou. Manuel Marsol deixou de ser publicitário e tornou-se ilustrador.

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Sempre desenhou, mas trabalhava em publicidade, “uma actividade criativa, mas não pessoal”, tinha um blogue de ilustração e apercebeu-se de que era ali que se sentia bem. Manuel Marsol deixou para trás o que lhe garantia sustento e inscreveu-se num curso de ilustração infantil e juvenil em Barcelona (Escuela de Arte y Diseño, EINA). Nasceu um ilustrador.

É preciso coragem para trocar o certo pelo incerto? “Não se trata de coragem, mas de necessidade. Uma necessidade vital de te sentires realizado a fazer um trabalho que te satisfaz”, responde à Revista 2 poucos minutos antes do lançamento do livro O Tempo do Gigante, numa tarde de sábado, na livraria Ler Devagar, em Lisboa. “Ganho menos dinheiro, mas é uma vida mais feliz.” Carmen Chica, a namorada, também publicitária e a quem desafiou a criar com ele a história, acrescenta: “É uma vida mais livre.”

A publicidade foi no entanto um “bom caminho”, explica Marsol: “Ali, trabalha-se muito com conceitos. E, num álbum ilustrado, a ideia que queres transmitir é muito importante. Há álbuns que são uma sucessão de cenas, ligadas de alguma forma, mas onde não há substância, não há uma ideia forte. Em publicidade, começa-se justamente por aí.”

Como venderia o publicitário Manuel Marsol “o produto” Manuel Marsol ilustrador? “No mundo da publicidade, se queres progredir dentro de um campo de trabalho, tens de o fazer através de festivais, como o de Cannes [Festival Internacional de Publicidade] e aí ganhares Leões. Tentei levar esta lógica para o sector da ilustração, porque os editores não me davam importância. Então, fiz por me apresentar em concursos e tive a sorte de me terem premiado em alguns importantes.”

Em 2012, teve uma menção especial no Encontro de Ilustração Lorenzo Goñi do Museu ABC de Desenho e Ilustração (Madrid); no ano seguinte, ganhou o III Prémio Internacional de Álbum Ilustrado Edelvives e, em 2104 e 2015, a Feira Internacional do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha seleccionou trabalhos seus para a Mostra de Ilustradores, além de ter sido o vencedor do Catálogo Ibero-Americano de Ilustração 2014. Tudo isto contribuiu para a visibilidade de Manuel Marsol. “Não foi bem uma estratégia, foi uma forma de mostrar os meus projectos. Ao princípio custava-me muito. Há muita gente com muita qualidade, é difícil entrar no mundo editorial. Os concursos puseram-me à vista das pessoas.”

Houve uma excepção nos editores que não “fizeram caso” dele e que não quer deixar de referir: “Eu digo sempre que ninguém me ligou… excepto a Orfeu [Negro]. Conhecemo-nos em Valadollid, Espanha, no Festival Ilustratour, numas entrevistas entre ilustradores e editores. A Carla [Oliveira], editora, gostou muito do meu trabalho e eu ainda não tinha publicado nada. Tornámo-nos amigos e sempre me acompanhou de perto, antes mesmo dos prémios e do reconhecimento”, recorda. “Temos alguns projectos que ainda não saíram, mas avançámos já com este.”

O conjunto de ilustrações que deu origem ao livro O Tempo do Gigante tinha por título La Casita e o júri que o premiou na Feira Internacional do Livro de Guadalajara (México) para o V Catálogo Ibero-Americano de Ilustração justificou a escolha “pela elevada qualidade artística e pela sensibilidade poética na criação de atmosferas, assim como na capacidade de transmitir emoções e de facultar múltiplas leituras”.

O mar na cabeça

Para Manuel Marsol, madrileno de 31 anos, o passado, as memórias e as emoções são centrais no seu trabalho criativo. “Ilustrar é recuperar o que eu sentia quando era pequeno. Gosto de recuperar emoções, como os medos, as fascinações, as coisas que me surpreendiam quando era criança”, descreve.

Prova disso é um outro livro já publicado, ainda não em Portugal, Ahab y la Ballena Blanca (Ahab e a Baleia Branca). “Eu sabia que queria falar do mar, das emoções que tinha na infância quando mergulhava e ficava deslumbrado a ver as algas debaixo de água. Isso para mim era claro, era isso que queria mostrar”, conta o ilustrador, que tem sempre o mar na cabeça e por isso nele transformou as ondas do seu cabelo no auto-retrato que fez para a Revista 2. “Para Ahab y la Ballena Blanca, fui buscar a história da Moby Dick [de Herman Melville] e as minhas memórias na praia com a minha irmã.”

É quase sempre assim que os seus trabalhos acontecem, uma mistura de investigação sobre os outros e sobre si próprio. “É preciso ver, olhar para muita coisa. Cada ilustrador e escritor tem a sua maneira, mas, para mim, a pesquisa é essencial. Ler, ver filmes, documentários, tudo o que esteja disponível à volta do tema, viajar até. Conseguir todos os inputs possíveis.” Às vezes, reconhece, exagera e tem de se obrigar a parar.

Diz ter conhecido bons publicitários que só recorriam à literatura, mas ele não consegue ficar-se por aí. “A literatura é essencial para mim, mas preciso de saber como os temas são tratados noutros meios. Tenho de me embeber completamente. Quando se trata da infância, a intuição nalgum momento dirá: ‘Ah, isto resulta melhor do que aquilo’.”

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Manuel Marsol aceitou o desafio da Revista 2 e fez o seu auto-retrato: um ilustrador com o mar na cabeça

Duas palavras poderiam resumir então o caminho que sempre trilha: “informação” e “emoção”.

Marsol estudou Publicidade e Comunicação Audiovisual e o seu nome completo é Manuel Martinez Soler. No entanto, resolveu juntar as duas primeiras sílabas dos apelidos (“Mar” e “Sol”) para simplificar um nome que lhe parece muito grande: “Criei um nome curto e conciso.” Além disso, libertava-se assim da assinatura dos trabalhos de publicidade: anúncios para televisão e imprensa. “O facto de ser ‘mar’ e ‘sol’ é uma coincidência bonita”, diz. E lembra divertido que, em Espanha, há muitos hotéis na costa que têm nomes como o dele: Mar e Sol ou Sol e Mar.

Filho de professores de História de Arte, não lhe faltam referências de autores e de obras clássicas e contemporâneas, mas valoriza também o “acidente” e o “erro” naquilo que um ilustrador pode criar. Numa entrevista à revista de ilustração La Neif, em Abril deste ano, Manuel Marsol disse: “O ‘acidente’ ajudou-me a desenvolver uma voz própria, porque, a partir das formas que encontro em cadernos de esboços ou em manchas de pintura, faço jogos e vou criando. O ‘acidente’ desenha muito melhor do que nós, porque tem a graça e espontaneidade que muitas vezes tentamos controlar.”

O gigante, por exemplo, “apareceu-lhe” quando estava a fazer algo que nada tinha que ver com o resultado a que chegou. Foi um “acidente” digital: “Enquanto apagava camadas no programa que estava a usar, surgiu-me um gigante entre as nuvens e a casa.” O conjunto La Casita construiu-se a partir daí.

Das imagens ao texto

Agora, é Carmen Chica quem fala: “Tínhamos cinco ilustrações e queríamos fazer um álbum juntos. Pensámos: temos um gigante, uma casita, o passar do tempo e uma árvore na cabeça. Com estas coisas, temos de criar uma história.” Depois de algumas “voltas” e “conversas”, chegaram à conclusão de que poderiam explorar a ideia de como “o gigante tinha prazer em estar no meio da natureza, sem fazer praticamente nada, a desfrutar apenas”.

Depois, centraram-se numa sensação de infância que muitos terão experimentado. “É Verão, vais para a praia quase todos os dias. Quando o Verão acaba, perguntam-te: o que fizeste nas férias? E tu nem sabes o que dizer, porque, na verdade, não fizeste nada”, diz ela. “Ou fizeste tudo. Não há como resumir”, diz ele. “Foi com base nessa sensação que começámos a trabalhar a história”, explica a publicitária free lance, que está no segundo ano de um curso de Literatura Infantil e que assina um livro pela primeira vez.

A cumplicidade e conhecimento mútuo tornaram fácil esta parceria. “Fui eu que a ‘piquei’ para fazer o álbum comigo”, conta Marsol, enquanto prime suavemente o indicador no braço de Carmen. Riem-se ambos. “Entendemo-nos muito bem porque partilhamos uma maneira parecida de ver a vida. E foi bonito trabalharmos juntos”, continua. “Eu estou apaixonada pelo livro”, diz ela. “É o nosso primeiro filho”, diz ele. E voltam a rir-se.

“Hoje não aconteceu nada. Nem hoje. E hoje também não.” É assim que começa O Tempo do Gigante, mas enquanto isto as imagens vão subtilmente mostrando pequenas alterações no protagonista, na árvore que traz na cabeça e no céu. A pergunta que subjaz é: o que se passa enquanto o tempo passa?

As dedicatórias dos autores remetem também para as pequenas coisas que se valorizam com a passagem do tempo. Carmen Chica: “Para os meus avós, pelas sestas em Lo Pagán e as paellas em El Cañarico.” Manuel Marsol: “Para a minha mãe, pelo dolce far niente. Para a Bubu e a tia Tere, por regarem a árvore.”

Assim como sabia que queria falar do mar na história da baleia, Manuel Marsol tinha uma certeza quanto ao gigante: “Queria falar sobre o tempo, as emoções decorrentes da passagem do tempo. O tempo é algo que me inquieta.”

O desenho chegou primeiro, mas, à medida que as emoções foram surgindo, a história revelou-se. Foi preciso deixar o tempo passar.

Digital e analógico

Neste livro (nomeado agora para Melhor Ilustração de Livro Infantil — Autor Estrangeiro, do Festival de BD da Amadora), a técnica de trabalho é sobretudo digital, mas conseguem encontrar-se muitas texturas. “Gosto de misturar a parte digital com a analógica e mais orgânica. Acrílico com óleo, tinta-da-china, pintura clássica, aguarela, dão boas texturas.” Depois, compôs tudo digitalmente, obtendo o resultado que encantou os jurados. E os leitores.

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“O livro da baleia era todo analógico, mais orgânico, muito pictórico”, descreve o ilustrador, que diz ser autodidacta na aprendizagem das diferentes técnicas e ter tido a possibilidade de ir explorando vários programas de edição, como o Photoshop. “Não tenho formação artística. No curso de ilustração trabalha-se sobre narrativas, conceitos, histórias, imagens, mas não se aprendem técnicas. As técnicas vêm de casa”, explica.

Como se sabe que um desenho está acabado? “Não sei como se sabe, mas sabe-se. Porque quando não está acabado, é muito claro. Quando não está bem, não está terminado, eu sinto-o, sinto que não funciona. Quando se está a trabalhar há algum tempo num projecto, há um momento em que alteras uma coisa aqui e ali, e tudo faz sentido. Tens uma certeza: agora está bem, não há nada que te incomode.”

Na publicidade não há esse tempo de maturação. “Não digo que não seja também um lugar fantástico para fazer peças de arte, mas tu não existes. E é muito mais complicado acabar um projecto em publicidade porque há muitas barreiras, muita gente, muitas pessoas que opinam e muitos interesses económicos. É tudo de hoje para amanhã. A publicidade também é criativa, mas não é pessoal. Se queres fazer histórias que tenham algum tipo de emoção tua, particular, não podes.”

Saber ter paciência

Carmen Chica volta a falar de liberdade: “Na publicidade não és tão livre. Ao fazeres um álbum, és o teu próprio cliente. Ninguém te diz: ‘Faz isto, muda aquilo.’ Podes propor ao editor e ele querer ou não. É muito difícil em publicidade fazer uma peça criativa. Anda tudo à procura de eficácia. Basta olhar para os anúncios de televisão, são todos iguais. Há um ou outro que se destaca, mas no geral são normalizados.”

Contudo, têm consciência de que os constrangimentos também podem ser criativos. “Para que o teu mundo seja legível no papel, há muitos limites. Temos de tentar contorná-los. Nunca devemos esquecer que um álbum deve ser democrático, não é só para ti o que fizeres com as personagens. Queres comunicar e chegar às pessoas”, diz Marsol, lembrando que a publicidade também os ajudou a ter paciência. “Comparando com discussões com clientes, uma diferença de ponto de vista com um editor é para nós uma brincadeira de crianças.”

Se o relógio não avançasse, a conversa continuaria, mas muitos miúdos e adultos esperavam os autores na galeria da Ler Devagar, para assistir a uma bela leitura e encenação de Madalena Garnier Marques ao som do contrabaixo de Hugo Antunes. Antes, Carmen Chica e Manuel Marsol contaram a todos a história da história do livro e até mostraram fotografias de infância.

Pelo entusiasmo que transmitiram, suspeita-se de que o gigante, com o passar do tempo, deixará de ser filho único.

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