Qualquer coisa de mentira e de verdade quando se puxa pela memória

O espectador quer saber se o estão a enganar. A Companhia Maior estreia duas peças em que a linha entre a realidade e ficção vacila.

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No edifício da Companhia Nacional de Bailado, os actores da Companhia Maior estão a ensaiar Um de Nós, que se estreia no Teatro Maria Matos a 29 de Outubro

“O pior sentimento é sermos descobertos depois de dizermos uma mentira insignificante” - é uma frase para eliminar no início de um dos ensaios da Companhia Maior, avisa o encenador Jorge Andrade.

Era uma das enunciações de um texto que vive sempre do superlativo: a sensação mais assustadora do mundo, a melhor maneira de morrer, a coisa mais engraçada da internet, dizem os onze actores com mais de 60 anos – é condição para se pertencer a esta companhia –, como se revelassem conclusões conquistadas ao longo da vida. Mas ninguém viveu nada disto, é tudo mentira.

O melhor e o mais rápido, o pior e o mais triste, o mais longo, o mais complexo, o mais complexo e o mais divertido é uma co-produção da Companhia Maior com Mala Voadora e está no Centro Cultural de Belém (CCB), no Pequeno Auditório, de 24 a 27 de Outubro. O texto de Tim Etchells, o convidado da bienal Artista na Cidade de Lisboa 2014, socorre-se da obsessão do dramaturgo por listas: encadeiam-se situações, juízos, conselhos numa hierarquia pessoal – “o mais” e “o menos”.

Ao mesmo tempo, mas no edifício da Companhia Nacional de Bailado, bem perto do Chiado, os actores da Companhia Maior que faltam na peça do CCB estão a ensaiar Um de Nós, que se estreia no Teatro Maria Matos a 29 de Outubro. São sete e estão semi-nus numa cama três vezes maior que as normais camas de casal: dizem o que sabem primeiro sobre a política – “na política tens de reconhecer cores”; “na política tens de ser sempre sincero, sobretudo ao mentir”. Depois toca Um grande, grande amor de José Cid: “no amor tens de dizer sempre a verdade mas nunca toda a verdade”; “no amor tem de haver sinceridade, sobretudo com todas as doenças que agora para aí andam”.

Na terceira parte do espectáculo, chega-se a um lugar mais íntimo. Revelam-se factos triviais – “um de nós sofre de vertigens”, “um de nós ruboriza facilmente”; outros são factos delicados – “um de nós já pensou mais do que uma vez em suicídio”, “um de nós já desejou a morte do pai”; outros ainda são factos que não precisávamos de saber – “um de nós de vez em quando come ranho”; “um de nós, depois de limpar o rabo, cheira sempre o papel higiénico”. No meio deste cocktail de segredos nem sempre estamos preparados para acreditar em tudo o que se diz – às vezes são coisas demasiado extraordinárias. Mas alguém viveu isto, é tudo verdade.

Descontraidamente, na cama
Peter Vandenbempt pertece à companhia belga Tristero e escreveu e encenou este texto, que estreou há dez anos com um elenco mais jovem. “As pessoas mais velhas têm mais arrependimentos, mas por outro lado têm menos angustias, menos ansiedades em relação à vida”, conta. Apercebeu-se disto nos inquéritos anónimos com que construiu a última parte do espectáculo: criou um endereço de email e através dele todos os actores lhe enviaram estas memórias confessionais que agora dizem descontraidamente na cama, sem saberem a quem pertencem.

“Se soubéssemos de quem estamos a falar, íamos coloca-lo numa prateleira”, diz o encenador, que lembra que é isso que fazemos com os políticos, de quem se fala no início da peça com algumas frases feitas e clichês, sempre generalizando. “Quando estamos a falar de alguém é melhor não sabermos de quem estamos a falar”, insiste.

“Nunca falámos disso nem tentámos descobrir quem é que escreveu o quê. Aliás, foi uma chamada de atenção do encenador que nos disse logo ‘ponham isso de parte, não se preocupem com isso’”, conta Carlos Fernandes, um dos actores. Ainda assim, memórias reais são um material de trabalho que pode ser inflamável: “No princípio foi como um pontapé, começou por ser muito forte: quando falamos da infância ou da mãe que morreu”, lembra o actor. Tratar este texto como outra ficção qualquer passou a ser questão de defesa, explica.

Instala-se assim um jogo com a audiência: o espectador procura nas caras de cada um dos actores sinais que denunciem a mentira ou o culpado: quem é quem? A confusão entre a ficção e realidade é intencional – afinal, lembra Carlos, o teatro é o lugar do “faz de conta”.

É deste “faz de conta” que Jorge Andrade está à procura na outra encenação da Companhia Maior, no CCB. O cenário que se vai montar no palco procura “um teatro mais teatral” que “recupera a tradição do artifício”: é um telão com uma fotografia em tamanho real – ou muito próximo disso – de um dos interiores do Palácio Foz, em Lisboa. O telão prolonga-se pelo chão e cobre alguns dos sofás em cena de modo a criar a ilusão óptica de que eles não existem.

Tal como o cenário que quer ludibriar, o elenco e o encenador procuraram “a dúvida ideal” entre ficção e realidade, que impede o espectador de saber se estas pessoas viveram tudo aquilo de que estão a falar, diz Jorge Andrade. Era também esta a ideia de Tim Etchells que quis desenhar uma “zona cinzenta entre o intérprete e o seu papel”, escreve na folha de sala de “O melhor e o mais rápido...”.

“Procurei trazer um bocado de teatralidade àquele espaço de diversas formas”, diz Jorge Andrade, que expõe a todo o momento a construção desta ficção. “A melhor maneira de morrer é, numa tarde de domingo, ir ao cemitério...”, começa um dos actores e logo em seguida outro interrompe: levanta-se e põe uma música melancólica na aparelhagem. Pouco depois, uma das actrizes fala com uma voz sensual a um microfone no fundo do palco: “as melhores conversas têm bastantes silêncios”. Mais à frente duas atrizes querem dizer que “o melhor lugar para ter sexo é a praia. Estar deitado na areia é morno e fresco ao mesmo tempo”.

“É como potenciar os melhores momentos da vida de cada um para construir aquilo que poderia ser um espectáculo perfeito: que tem um momento triste, um momento solitário, um rápido, um mais lento, um mais complexo”, explica o encenador. Ou até um momento mais surpreendente, como aquele em que, depois de se dizer que “o maior prazer da vida é a leitura”, ou “uma viagem”, ou “uma história”, alguém desmente tudo e diz: “o maior prazer é a heroína.”

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