O papel dos artistas nos Jogos da Fome do século XXI? O de resistentes

Richard Florida como vendedor de banha da cobra e os artistas como catalisadores de energias anárquicas, focos de resistência – os Jogos da Fome da arte e do poder vistos pela conceituada artista plástica e académica norte-americana Martha Rosler

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Martha Rosler Lara Jacinto/nFACTOS

Martha Rosler, tinha 20 anos quando o século XX entrou na década de 1960. Assistiu à transição entre o que restava do mundo moderno e o novo mundo contemporâneo. Mudança após mudança. “Se queremos algum tipo de revolução, temos que fazer manifestações, estar lá fora, organizarmo-nos, dedicarmo-nos.” E isto nem sequer é activismo. É “cidadania”, disse ao PÚBLICO numa entrevista à margem do Fórum do Futuro, no Porto, onde foi conferencista convidada.

Começou a sua conferência por explicar que, nos anos 1940, quando Jackson Pollock estava a fazer as suas pinturas abstractas, nem os artistas nem os públicos da arte poderiam imaginar a ligação intrínseca entre o seu mundo e os grandes fluxos financeiros internacionais. O que aconteceu? As relações entre arte e dinheiro e entre arte e poder intensificaram-se ou tornámo-nos menos hipócritas no reconhecimento dessas ligações?

Em parte, o que eu estava a dizer é que a forma como Pollock trabalhava as telas, no chão, tinha qualquer coisa a ver com a ideia de território e posse territorial. Na verdade, o facto de ele desistir da perspectiva – que foi o que fez com a sua pintura – liga-se com a história da posse de terra. Há isso e o mais óbvio: a relação com o dinheiro, que se intensificou muito, porque se tornou muito mais visível. Pollock fez parte da primeira geração de artistas em que os mercados financeiros mundiais se tinham focado nos Estados Unidos e se tinham tornado completamente hipertróficos. Tudo isso e a emergência da cultura de celebridades pesou muito sobre os expressionistas abstractos, a maior parte dos quais faziam parte de uma cultura de boémia outsider vagamente empobrecida.

“Pesou” quanto?

Acho que podemos dizer que o expressionismo abstracto foi destruído pela sua relação com o dinheiro e a fama. Diria ainda que há uma razão para o modelo de transcendência que ele propunha não poder legitimamente manter-se no mundo do pós-guerra: a economia. Portanto, sabemos mais [sobre a relação entre arte e dinheiro] e a pressão intensificou-se vastamente. Toda a gente que tem hoje alguma relação com o mundo da arte, mesmo ao nível mais popular, percebe a ligação deste mundo ao mundo das finanças, especialmente nos Estados Unidos. Como alguém dizia, chegámos a um momento em que alguns dos artistas são tão ou mais ricos quanto os seus coleccionadores. Não é exactamente assim porque alguns dos patronos da arte são incomensuravelmente ricos, mas, obviamente, há artistas que se tornaram extramente ricos. A ‘financialização’ da arte disparou até para o topo da cobertura [mediática] que se faz do mundo da arte. Em publicações [de referência] como o New York Times os leilões são tão história quanto [as exposições]… É como os desportos profissionais – aquilo de que ouvimos realmente falar é dinheiro, quem custou quanto, quem está a fazer quanto, qual dos grandes jogadores conseguiu o melhor contrato e quantos milhões de euros ou dólares por ano faz.

O mundo da arte tornou-se numa espécie de grande sprint anual, os cem metros barreiras para ver quem chega ao fim melhor cotado no mercado?     

Exactamente. É uma quantificação e ‘financialização’ de qualquer coisa que antes considerávamos estar fora do sistema de avaliação das mercadorias [cujo valor depende das leis da oferta e da procura] e que agora sabemos estar completamente lá dentro. Isto começou a acontecer há pelo menos quatro ou cinco décadas. Não podemos fingir que é novo. Mas atingiu um ponto inaudito. Vejamos uma referência mais popular – os filmes: hoje em dia julga-se um filme pelos seus resultados de bilheteira. Se um filme for um sucesso de bilheteira, as pessoas nem se dão ao trabalho de falar do facto de ser ou não um bom filme. Talvez, mais tarde, numa coluna mais especializada [na imprensa], mas o grande título imediato é sempre: “Nº 1 nas bilheteiras”.

Voltando atrás, não completou o paralelismo que estava a aflorar entre a forma como Pollock pintava, com as telas esticadas no chão, e a organização e propriedade territorial como instância de acumulação de riqueza.

A pintura era uma arte de cavalete. Depois, tornou-se grande de mais para estar no cavalete. O que Pollock fez que ninguém tinha feito antes foi tornar a pintura não numa representação da paisagem mas em paisagem. E há uma certa ironia no facto de a tela passar a ser um território para acção [action painting] e de essa ser uma boa janela através da qual ver a relação entre a arte e o poder. Os terratenentes não poderem definir a sua propriedade sem um sistema métrico. Também não se pode representar a paisagem de forma a que pareça real sem a perspectiva. Ora, a história da pintura é a história do desenvolvimento e da rejeição da perspectiva – porque o abstraccionismo é a rejeição da perspectiva, a opção pela bidimensionalidade, sendo ainda, ironicamente, sobre território. Isto é especialmente irónico no caso do Pollock, porque ele pinta com a tela no chão. A tela dele é um espaço em que percorremos um território. E mesmo quando ele, no fim, volta a pôr a tela na vertical [na parede] toda a gente percebe que a forma como ali se chegou a um “significado” derivou da horizontalidade. Tal como a terratenência está na base da acumulação de capital, estas pinturas também se tornaram num princípio de acumulação de capital. Na altura, ninguém estava a pensar sobre isto, mas eu não consigo deixar de pensar.

E porque acha que o modelo de transcendência proposto pelo expressionismo abstracto não poderia ter lugar no mundo e na economia do pós-guerra?     

Porque os artistas dependem das ideias dos seus patronos. Por isso é que costumo falar no desenvolvimento dos públicos burgueses a partir de finais do século XIX e nas teorias que apontam o abstraccionismo, o simbolismo e etc., como formas de fugir às questões do realismo, que levaria à representação das classes trabalhadoras e da militância do operariado. Claro que os artistas fizeram muito disso, mas principalmente no desenho e na gravura. E os que o fizeram não se viram muito bem pagos por isso pelos seus patronos, que, na verdade, queriam era ver outras imagens.

O modelo de transcendência corresponde ao facto de os artistas nos mostrarem outro mundo. Era uma teoria muito importante. Mas, no momento em que o [centro do] mundo da arte se muda [de Paris] para Nova Iorque [na década de 1940]… O patronato nos Estados Unidos nunca se interessou muito por especializações intelectuais ou teorias da representação, quer apenas coisas muito imediatas. Como Rockefeller disse um dia sobre [a pintura de Mark] Rothko – e vou parafrasear: oferece um espaço de relaxamento ao homem de negócios cansado. Isto é perfeito! O espaço da abstracção é uma vista sobre outro mundo, sem quaisquer especificidades. Mas isto não podia durar, porque a arte passou a ser apreciada de forma massificada. Quando se tornou numa mercadoria, uma mercadoria cara, Jackson Pollock apareceu na capa da revista Life. A revista Life estava praticamente em todos os lares americanos! Estava nos consultórios médicos – estava em todo o lado. Definia a imagem do mundo. Antes de a televisão estar em casa de toda a gente, estava lá a Life. E, na capa, um dia, apareceu este artista que estava a destronar Picasso como o mais importante artista do século XX. Pollock acabou por morrer bêbado num acidente de carro muito pouco tempo depois e esta ideia de que a arte é suposto ser sobre outra coisa qualquer, misteriosa, transcendente… É um bocadinho doutrina católica, tudo isto. Não sei…

Os americanos nunca aderiram a esse tipo de coisa, nunca embarcaram no ethos fundador da pintura europeia. Com o Armory Show [a primeira exposição internacional de arte moderna organizada nos EUA], em 1913 [apresentando obras de Ingres, Delacroix, Degas, Cézanne, Renoir, Monet, Gauguin, Van Gogh, Manet, Brancusi, Braque, Matisse, Duchamp…], mal aceitaram a ideia de uma arte evoluída. Havia uma multiplicidade de cartoons a dizer, basicamente, que a arte moderna se estava a rir das pessoas. Assim, não surpreende que o modelo de transcendência, em que se está em contacto com a eternidade da natureza e do mundo, fosse destronado pela arte pop. A natureza foi destronada por uma segunda natureza: o mundo das mercadorias, que definia a vida quotidiana de meados do século XX na América moderna. Aqui estava uma forma de arte que parecia uma celebração desse mundo porque o mimetizava em absoluto! Warhol, nesse sentido, era um génio! “Quero ser de plástico” – é perfeito! “A filosofia de Andy Warhol (de A a B e de Volta a A)” – este título é fabuloso! Eu entendo, claro, que é uma arte de crítica. Mas, se virmos a pop como uma celebração das coisas à nossa volta, então, tem muito mais a ver com o que o grande público está preparado para receber. Por fim, uma arte que podemos entender! Foi o que as pessoas pensaram… Afinal, era apenas uma caixa de [detergente] Brillo, ou uma lata de sopa Campbell… Basicamente foi por uma moldura em volta do que as pessoas já conheciam.

Em relação às pinturas de Pollock, usa uma expressão particularmente sugestiva – chama-lhes “mapas de desorientação”. De onde surge esta expressão?

É o que elas são. Quando olhamos para elas, não sabemos o que estamos a ver. São completamente desorientadoras. Poderiam ser visões do cosmos, mas as gotas não escorrem na direcção certa. Poderiam ser vistas aéreas, mas são pinturas, são planas, e não representações fotográficas. Parecem referências a um território, parecem constituir-se como territórios, mas territórios de quê, para quê e de que dimensão? Acho que é exactamente o que são – mapas de desorientação.

A ideia de um mapa de desorientação afigura-se especialmente interessante porquanto, por vezes, as pessoas precisam de perder referências para…  

… se libertarem dos seus quotidianos, sim.

João Ribas [director-adjunto do Museu de Serralves] propõe o artista como ponte para essa libertação. Propõe o artista como figura “chaplinesca”, um catalisador de energias anárquicas, foco de resistência à normalização. Concorda?

Sim. Talvez seja uma imagem um pouco poética de mais, mas, de facto, vejo na arte a capacidade de corporização de uma forma de resistência.

Não é contraditório com a ideia do enredamento cada vez mais apertado nas teias das finanças e do poder, como dizia antes?

Há uma diferença entre a obra de arte enquanto mercadoria e o artista e a forma como os artistas se vêem a si próprios. Não conheço nenhum artista, apesar de conhecer muitos, que se veja a si mesmo como dama de companhia do poder. Por isso acho que algumas das coisas que os artistas dizem e fazem são uma resposta ao difícil lugar em que nos encontramos na nossa relação com o dinheiro e o poder. Ou seja, um artista e uma obra de arte não são uma e a mesma coisa. O autoconceito de um artista não é como os jovens tão negligentemente dizem: “Ah, pois, produzimos mercadoria.”

É assim que se vêem hoje os jovens artistas, como produtores de transaccionáveis?

Muitos deles, sim. Os que têm isto mais claro são aqueles que se projectam numa carreira de sucesso de cerca de 10 anos. É exactamente como acontecia com os milionários.com: tinham uma ideia, que era comprada, reformavam-se e tinham uma vida feliz algures num sítio simpático a não fazer nada que não quisessem. Parece-me que é o que pensam neste momento muitos dos jovens das escolas de arte de elite nos Estados Unidos, escolas pelas quais, na maior parte dos casos, pagaram muito dinheiro. Pensam: faço uma fortuna e desapareço durante a noite.

E que tipo de pensamento crítico podemos, que tipo de construção crítica da sociedade podemos esperar desses jovens?

São os artistas errados dos quais esperar contributos sociais.

No entanto, como disse, estão nas escolas de elite – ou seja, são os que mais probabilidades terão de “sucesso” pelo acesso a interlocutores privilegiados, visibilidade, galerias…

É verdade. Mas isto não define todos os jovens em escolas de elite. Uma coisa que sempre adorei, quando dava aulas, era a diferença entre o que pensava a academia – a administração, o corpo docente, etc. – e o que pensavam os estudantes. A academia pensava: “Vamos ter uma faculdade de pintura de topo e os nossos alunos vão conseguir boas galerias e ser bem-sucedidos e famosos; com isso, vamos ter alunos ainda melhores que vão conseguir galerias ainda melhores.” E os alunos pensavam: “Vim para a Universidade para experimentar com todo o tipo de coisas diferentes e desenvolver as minhas ideias e vocês só querem que eu feche a porta e pinte?” Devo dizer que eu própria vivi isto. Os alunos são seres humanos jovens – têm um entusiasmo sem limites sobre as suas próprias possibilidades. E estão a ser bombardeados com uma ideia pré-concebida sobre como as devem perseguir. Isto replica o que esteve por detrás dos movimentos estudantis [da Universidade da Califórnia] de Berkeley, em 1964. Esses alunos muito de elite fizeram aquilo a que se chamou Movimento pela Liberdade de Expressão [Free Speech Movement]. Estavam zangados porque não lhes era permitido falar sobre a guerra do Vietname no campus. Mas aquilo com que estavam furiosos era com o facto de serem produtos. As pessoas esquecem esta parte, mas eles empunhavam cartazes a imitar cartões perfurados para computador que diziam: “Não dobrar, encadernar ou truncar”. Queriam dizer que estavam a ser vistos apenas como números, que não queriam ser produtos e que, muito em particular, não queriam ser trabalhadores do conhecimento [knowledge workers] a quem se dizia quais deviam ser, exactamente, os conteúdos do seu conhecimento. Portanto, acho que os artistas são humanos que têm sonhos, ideias e objectivos múltiplos, acontecendo que “a administração” quer que sejam e se comportem de determinada maneira. Eles sabem isso. E alguns dizem: “Claro, eu faço isso.” Se se sentem culpados ou não, não sei. Mas não sentem que se estão a trair a si mesmos. Acreditam que vão transcender essa parte das suas vidas – acreditam que primeiro vão fazer muito dinheiro e que, depois, farão o que quiserem. Porque o sonho que realmente toda a gente tem é não ter patrão, é sermos os nossos próprios patrões, não ter que responder a nada que nos seja ditado por outros. É um sonho bastante infantil, mas todos o temos.

Então, o advento do moderno não mudou nada na relação de dependência que os artistas tinham dos seus patronos no Antigo Regime?

Claro que mudou. Os artistas são hoje muito mais livres porque não têm que mimetizar directamente [no seu trabalho] os pressupostos ideológicos daqueles que lhes pagam. Antes, se o Papa queria a Capela Sistina pintada, o Miguel Ângelo tinha que passar não sei quanto tempo deitado de costas num andaime a fazer determinadas representações bíblicas em que Deus era bom e em que apareciam Adão e Eva e tudo isso. Hoje, fazemos um trabalho – é tudo. Pelo caminho, houve figuras como [o pintor oficial de Napoleão, Jacques-Louis] David [jacobino, apoiante da Revolução Francesa] que se tornou transmissor de imagens míticas de referências à revolta e democracia. Antes tivemos os Fragonards, que eram os decoradores das casas da nobreza. Depois, os artistas tornaram-se muito mais livres para escolher os seus próprios temas. Podemos dizer que, hoje, são eles que escolhem os seus temas. No entanto, com distância histórica, temos também que reconhecer que [em alturas em que era suposto haver já essa liberdade] esses temas reflectiram, por exemplo, os interesses da burguesia ascendente em França. Por exemplo, quando os pintores começam a trabalhar ao ar livre não pintam a fábrica que está ali mesmo. Ocasionalmente, Pissaro pintou fábricas, mas o que toda a gente pintava eram as paisagens verdejantes. Isto quer dizer que se escolhia representar uma secção do mundo que não desafiasse os pressupostos sociais da classe que constituía o público da arte. Nesta altura, os artistas já tinham um campo de acção muito mais livre do que antes e também já podiam levar as suas experiências formais mais longe. No entanto, as suas representações precisavam de ser pelo menos aceitáveis, adequadas. O naturalismo e o realismo, por exemplo, nunca foram muito apreciados pela burguesia. Eram demasiado… reais. Continham demasiada realidade. [risos] É como a diferença entre o estilo russo e o estilo americano de totalitarismo, muito, muito proeminente na era Bush.

Como descreveria essa diferença?      

O estilo americano é internalizado. Nos regimes ao estilo do russo – como o norte-coreano ou o húngaro –, não podemos dizer publicamente aquilo que achamos porque vamos ter problemas, se formos escritores seremos ostracizados, etc., e sabemos que há controlo geral bastante estrito. Grande parte do mundo funcionava assim até há muito pouco tempo. Já nos EUA a censura é internalizada. Temos uma comunicação social que é tão absolutamente subserviente como na Rússia. A imprensa russa goza com a imprensa norte-americana e a imprensa norte-americana goza com a russa, mas são iguais, ambas servem as necessidades do Estado e não criticam. Nos EUA, neste momento, há uma revolta da comunicação social contra o presidente [Barack Obama], mas isso tem a ver com a vassalagem aos mestres do dinheiro, que são muito mais importantes do que qualquer presidente. Já os artistas sempre tiveram vidas marginais e boémias, mesmo sob regimes de patronato, sempre fizeram coisas que não era suposto (embebedar-se, verem-se envolvidos em disputas, matarem pessoas...). O problema, hoje, é que os artistas já não querem vidas boémias. Na verdade, na maior parte das grandes cidades já não há boémia. E os artistas o que querem é seguros de saúde, boas casas onde viver, ter filhos, boas escolas para os filhos… Todas as coisas que numa antiga vida artística boémia eram absolutamente precárias, de uma forma que os artistas norte-americanos nem conseguem já conceber. Se um artista gasta 100 mil euros para frequentar uma escola de artes, decididamente, vai querer retorno. Não consigo insistir o suficiente nisto: o peso da dívida estudantil está a esmagar os artistas norte-americanos. É um desastre.

Não é um problema específico dos estudantes de artes…       

Não, mas é novo para as artes – só na última década é que as escolas de artes começaram a cobrar o que cobram hoje de propinas. Até a nossa famosa escola gratuita, a Cooper Union [for the Advancement of Science and Art, em Nova Iorque] está a cobrar propinas. [Este ano] passou de zero a 20 mil dólares [16 mil euros] por ano.

Como é que um artista assume um empréstimo sem saber quando e se vai começar a ganhar dinheiro para o pagar?

É por isso que nos tornamos empregados de mesa. Na minha geração, era fácil: arranjávamos empregos como professores. Havia muita procura porque a educação artística era todo um investimento das universidades e escolas. Hoje contratam-se adjuntos, trabalhadores precários que ganham menos do que os empregados de mesa. [Como adjuntos] podem-se passar horas infinitas a ler trabalhos de alunos e a correr de escola para escola. É uma vida miserável. Conheço muitos jovens profissionais da arte com essa vida. Eu tive sorte – arranjei emprego como professora e tive um contrato, pude ter uma vida organizada, em vez de uma vida terrivelmente mal paga, precária e enlouquecedora.

Mesmo assim, ter um emprego é já, normalmente, demasiado absorvente, esgotando a energia criativa.

Claro. Nos últimos 30 anos desenvolveu-se um quadro de professores de artes que tinham responsabilidades reduzidas, mas na maior parte das escolas há uma guerra contra esses professores, a quem nem sequer é dado tempo para irem à inauguração das suas próprias exposições. E os nossos colegas odeiam-nos quando somos bem-sucedidos, o que é um grave problema.

No entanto, é também muito crítica em relação à ideia de uma profissionalização da arte.

No sentido de se pensar que há percursos pré-determinados a percorrer de forma a ter sucesso, em relação à ideia de uma “carreira”. Quando eu comecei, nunca, mas nunca se usava a palavra “carreira”. Era considerada tabu por sugerir que alguém tinha uma relação de instrumentalização com o seu trabalho. Hoje, os artistas falam em “práticas”. Diz-se: “A minha prática é…” Em vez de: “Aqui está o que faço como artista.” Ou: “Aqui está o meu trabalho e pensamento.” O percurso que um artista deve fazer foi normalizado e institucionalizado. Dantes havia uma grande diferença entre um artista e um arquitecto. Um arquitecto era ensinado a falar do seu trabalho de certa maneira, a usar determinadas roupas, a pôr certo tipo de óculos. Os artistas, hoje, são iguais – só as arestas são mais suaves porque nas escolas realmente não nos pedem que nos vistamos de certa forma e falemos de certa maneira. A arte tem vindo a seguir cada vez mais o modelo de escola profissional da arquitectura, sobretudo no mundo anglo-saxónico. É doentio. Um artista não poder dar aulas sem um doutoramento. Isto é risível – é grotesco! Fazer arte e não escrever ou teorizar sobre arte – é isso que os artistas devem fazer!

Na sua conferência, apresentou Richard Florida, o mais mediático teórico das “indústrias e cidades criativas”, como um “evangelista do negócio urbano”. O que lhe desagrada nesta figura tão popular?

Sou tão imune aos disparates dele... Viu as fotografias que mostrei dele e da mulher, aquela espécie de micro-unidade de glamour? São espantosas de tão ridículas! Ele é vendido como uma estrela, alguém que qualquer presidente de câmara de qualquer cidade ficaria feliz de ter ao seu lado num pódio e dizer: “E hoje tenho aqui comigo o meu bom amigo Richard Florida.” Ele vende banha da cobra! Há tantas falhas no que diz que até ele, anos depois, é obrigado a reconhecer que deveria ter prestado mais atenção a isto ou aquilo e a esquivar-se dizendo não saber por que as pessoas acharam que estava a afirmar não sei o quê. É um vigarista. Fala na “classe criativa”, uma “nova classe”. Mas, realmente, [a “classe criativa”] é o quê? Tem a ver com uma “classe” – é economia, não é? Não, diz ele – tem a ver com criatividade. É assim que ele estabelece a sua pertença à linhagem de um David Harvey [geógrafo marxista britânico] e outros teóricos de esquerda. Mas, que não haja equívocos: ele é um social-liberal, um reaccionário americano. As pessoas nos Estados Unidos ficam sempre chocadas quando eu lhes recordo que ele é um liberal. O que ele predica é o neoliberalismo.

Porque é que as pessoas ficam chocadas com a ideia de ele ser um neoliberal?

Nos Estados Unidos temos um entendimento muito fraco destas questões [de nuances políticas] porque, para nós, “liberal” é alguém tolerante, uma boa pessoa [risos]. Realmente não percebemos o significado económico de “liberal”. As pessoas acham que “neoliberal” quer dizer o mesmo que “conservador”. Não! Portanto: Richard Florida vende banha da cobra para gestores. Ele diz: as cidades têm um problema, o problema é que estamos no fim de uma era produtiva no Ocidente, e aponta a sua forma de resolver este problema. Que é exactamente o que o [economista] Clark Kerr dizia: o que os comboios foram para o século XIX e os carros para a primeira metade do século XX as indústrias do conhecimento serão para os dias de hoje. O Kerr também era um liberal. E Richard Florida usa categorias ardilosas. Quando o livro dele saiu [em 2002], apesar de ter havido o crash.com, a economia ainda estava em bastante bom estado. Foi antes da actual crise económica, que data de 2008 e que continua no sector do emprego. Na zona euro, neste momento, há vários países, como Portugal, em que as classes médias educadas parecem ser dadas como supérfluas, como fez a [chanceler alemã] Angela Merkel [que no princípio de Novembro disse que Portugal e Espanha têm demasiados licenciados]. Já Richard Florida parece estar a dizer que essas são as pessoas que tornam uma cidade vibrante. Ele chama-lhes “criativas”, o que lhe permite fingir que está a falar de artistas, quando, na verdade, os artistas não são bons contribuintes. O que ele diz – e isso é simpático – é: as cidades têm que apoiar os artistas quer eles sejam bons contribuintes ou não. Mas a verdade é que se as artes não contribuírem directamente para a economia de uma cidade, simplesmente não vão ter apoio público. É assim. E este é um assunto sério.

Quais são os efeitos perversos da tentativa de construção forçada de uma suposta “cidade criativa”?

Neste momento há cidades a destruir zonas pobres – como está a acontecer em Kowloon [em Hong Kong, China] – para instalar as suas “cidades criativas”. Inevitavelmente, isto não terá os resultados que os gestores desses países esperam e essas formas de aposta económica vão provar-se esgotadas e terão que surgir outras formas de salvar o mundo. Mas é muito difícil assistir a todas essas postas em prática de receitas sobre como salvar as cidades sem ter inveja, portanto todas as cidades querem aplicá-las. Construir estádios não resultou. Será que é organizar os Jogos Olímpicos que vai fazer de uma cidade um pólo global atraente para os deuses da chuva das finanças e investimento? Aquilo para que estamos a olhar são, na verdade, diversas tentativas desesperadas e vãs de revitalização económica. Isto numa era de crise fiscal em que o fluxo de riqueza, como provado pelo [economista francês] Thomas Picketty, “o não-marxista”, como ele diz, se faz dos pobres e da classe-média para cima a um ritmo incrivelmente rápido. O que Picketty fez foi pegar, por exemplo, na tese de que a tendência, em democracia, é a igualização salarial – não, diz ele, isso foi verdade no período do pós-guerra, mas foi apenas uma suspensão da real tendência; a real tendência é a riqueza escapar dos pobres e da classe média em direcção ao topo. Dizer isto, é extirpar à ideologia democrata do Ocidente um dos seus pilares fundamentais, aquele que diz que a democracia tornará as pessoas livres e afluentes.

Tinha 20 anos no princípio dos anos 1960 – ou seja, viveu já como adulta a maior parte dos momentos mais transformadores da segunda metade do século XX em diante. Como é que esse processo de mudança a marcou e como diria que influenciou o seu trabalho?

Quando entramos nessa era de mudança, como toda a gente, eu era uma social-liberal moderada e uma pintora abstracta. Quando toda a gente começou a falar de feminismo, no princípio, não estava interessada. Porque haveria de estar? Não sentia que fosse oprimida – é um clássico. E demorou alguns anos. Lembro-me de em meados da década de 1960 estar a falar com a minha professora mais importante, que era uma mulher, e de ela me dizer que as mulheres seriam livres quando decidissem abrir mão dos seus privilégios. Quais privilégios?, pensei na altura. Percebi depois que o privilégio era depender de outros, não ter que ganhar a vida. E esta era uma verdade desagradável. Ao decidirmos ser apenas “adjuntas” de alguém que ganha um salário estamos a fazer trabalho não pago – dedicamo-nos à tarefa da reprodução. Isso fazia com que, na verdade, tivéssemos mais ou menos os direitos de uma criança. Eu sou uma racionalista, portanto fui persuadida pelos argumentos. No liceu comecei a ajudar organizações de luta pelos direitos civis e contra a guerra nuclear, o que perturbava imenso os meus pais, que não queriam que ninguém fizesse nada desse género, especialmente uma rapariga. Eu não dava muito a cara, mas, como dizia a minha mãe, que cresceu nos anos 1930, bastava assinar qualquer coisa para poder ser posto numa lista negra [sem conseguir encontrar emprego, por exemplo] para o resto da vida. Era o que acontecida nos Estados Unidos. Mas eu ouvi o Malcolm X falar. E ele era muito persuasor. Também ouvi Martin Luther King. [A 8 de Agosto de 1963] Fui na [célebre] marcha a Washington, por empregos e liberdade. E, claro, depois a guerra foi avassaladora – a ideia de que podíamos assumir uma guerra de outro país, no caso, a França, e começar a matar pessoas massivamente e a recrutar os nossos jovens… Pior: não recrutar os estudantes, mas apenas os não-estudantes, ou seja, o proletariado. E quem é que ficou mais a zangado com isto? Não foram os trabalhadores, a grande massa popular – esses obedeciam. Eram os estudantes que estavam furiosos – tinham a fúria que a “working class” não tinha. E eu também.

Datam dessa altura alguns dos seus trabalhos mais conhecidos: contra a guerra, sobre o papel da mulher…

O que pensei foi que noutra vida poderia continuar a fazer pintura abstracta, mas que, infelizmente, nesta, não havia tempo suficiente para isso. Parei de pintar. Comecei apenas a fazer trabalho que adviesse das minhas maiores convicções políticas e questões prementes sobre o que o mundo deveria ser. Numa crítica à representação, muito do meu trabalho tornou-se sobre a forma como a mulher é representada, como a guerra é representada, como a casa ideal é representada… As pessoas, hoje, querem ignorar isso e chamar-me activista, mas, na verdade… O João [Ribas] ontem falou sobre isto: chama-se cidadania. Concordo. Pés na rua? Sim. O que os artistas têm que perceber é que não conseguem fazer revoluções – quem faz revoluções é o povo, nas ruas. E, se queremos algum tipo de revolução social, temos que fazer manifestações, estar lá fora, organizarmo-nos, dedicarmo-nos. Não estou a falar de revoltas violentas – estou a falar de mudança social.

A arte poderá não fazer revoluções, mas pode contribuir com enquadramentos.

Absolutamente. Concentra o pensamento, oferece actividade simbólica que foca a atenção das pessoas. A questão é: e depois? Um liberal-social moderado pode olhar para imagens de sofrimento, meter a mão no bolso, tirar o livro de cheques e contribuir com alguns dólares ou euros para esta ou aquela causa, sentindo que fez a sua parte; quando é online chama-se “clictivismo” [clicar+activismo]. Essas pessoas é preciso persuadir [a sair à rua]. Mas o que o [movimento] Occupy veio demonstrar é que os jovens estão motivados. Isso é tão importante – o movimento Occupy é tão importante! E esse capítulo não se fechou.

Voltou ainda agora, em Hong Kong.

Exactamente. E sabe que gesto [os manifestantes de Hong Kong] usaram? O de Ferguson – mãos ao alto, não dispare. Outro gesto que está a correr mundo e é muito curioso – este: [levanta três dedos juntos no ar]. É do filme Os Jogos da Fome. Três dedos – revolução. Um gesto vindo de um acontecimento real, outro vindo da ficção, de livros e filmes para adolescentes sobre revolução social, revolução violenta, sobre como depor um poder instalado. Isto é muito, muito interessante.

 

 

  

 

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