Protestar, resistir

Em Fetish Bones, Camae Ayewa, aka Moor Mother, documenta o racismo sistémico e institucionalizado nos EUA e as heranças da escravatura nos sistemas de opressão da população negra. Música de protesto para provocar confronto e desconforto.

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"Quero dizer o que é preciso ser dito agora. Já há canções suficientes sobre acordar bonita", diz Camae Ayewa

“Eu escolho reflectir os tempos e as situações em que me encontro. Isso, para mim, é o meu dever.” Estas palavras de Nina Simone encontram uma série de ecos no trabalho da americana Camae Ayewa, artista visual, escritora, professora e activista que tem também um projecto musical a solo, Moor Mother. O seu último disco, Fetish Bones, documenta o racismo sistémico e institucionalizado nos EUA e as heranças da escravatura nos sistemas de opressão, segregação e criminalização da população afro-americana. São 13 canções de protesto contra o esquecimento, a omissão e a alienação, que se movem sismicamente entre electrónica corrosiva, noise, raiva punk, spoken word, gravações de campo e detritos de free jazz, gospel e rap.

“Quero dizer o que é preciso ser dito agora. Já há canções suficientes sobre acordar bonita. Preciso mesmo de acrescentar mais coisas a isso? É isso que está sub-representado? É esse tipo de perguntas que tenho de me fazer”, diz Camae Ayewa ao Ípsilon a partir de Filadélfia, onde vive.

Criada numa família religiosa em Aberdeen, Maryland, Camae cresceu a ouvir gospel “muito antigo”, sobretudo hinos de africanos escravizados. Mais tarde chegaram outros nomes: Bikini Kill, Sleater-Kinney, Alice Coltrane, Bad Brains. Em 2000, quando se mudou para Filadélfia para estudar fotografia, entrou numa relação séria com a poesia e a música. “Conheci a minha amiga Rebecca [Focus] e começámos a fazer freestyle nos dormitórios uma da outra”, conta. “Criámos bandas punk como os Mighty Paradocs. Depois ela mudou-se para Los Angeles e comecei este projecto a solo. Antes deste novo disco lancei muita coisa online, muitas paisagens sonoras.”

Fetish Bones, editado pela Don Giovanni, é mais do que um gesto de indignação, mais do que um perfume de rebelião. Camae processa os horrores da escravatura e dos efeitos cumulativos do racismo numa visceralidade interpretativa, muitas vezes em curtos poemas-canções noise, e numa escrita que provoca confronto e desconforto. Obriga-nos a ouvir, a engolir em seco. Crava na sua pele os linchamentos e assassínios, torna a história numa experiência física tonitruante, descarnada e circular (“Cycles the same/ Before n after/ They blood bath ya/ New lynch slave remaster”, diz em Parallel Nightmares). Passaram mesmo 57 anos entre o assassínio de Emmett Till, 14 anos, e Trayvon Martin, 17? “Quando digo que o tempo é expansivo e não linear digo que estou conectada a tudo isto. Tudo tem ligações”, nota Camae.

Creation Myth, faixa que abre e resume o disco, anuncia uma viagem pelos motins raciais desde 1866 a Ferguson (“One has to be dead when a man wants to beat us/ When they want to rape us”). Arranca com uma elevação ascética à Sun Ra para entrar num embate de electrónica rachada, samples de gospel e free jazz, voz beligerante. Há sangue, há poeira, há história, há nomes. Camae evoca algumas das mulheres negras mortas pela polícia em anos recentes, e que são tantas vezes esquecidas: Yvette Smith, Rekia Boyd, Aiyana Stanley-Jones ou Shantel Davis. Uma canção que deve ser ouvida depois de Strange Fruit, de Billie Holiday, e Mississippi Goddam, de Nina Simone.

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Criada numa família religiosa em Aberdeen, Maryland, Camae cresceu a ouvir gospel “muito antigo”, sobretudo hinos de africanos escravizados

No underground

Deadbeat Protest, bomba-relógio punk transmutado em noise gangrenoso, e By The Light, com o dardo “I’m bell hooks trained as a sniper/ Sandra Bland returning from the dead with a hatchet”, são outros dos pontos altos do disco. Para ela, o pessoal é político. “Cresci em bairros sociais. A mãe de uma amiga minha foi morta pela polícia, cresci à volta de prostituição, de uma epidemia de crack; vi tudo isto a acontecer desde criança.”

Em Fetish Bones vemos a rolar à nossa frente uma série de capítulos da história dos EUA, e, como diz Camae, está tudo ligado: a escravatura; a guerra civil; os linchamentos do Ku Klux Klan; as leis segregacionistas de Jim Crow; os motins raciais de Chicago de 1919; o movimento dos direitos civis; as políticas da “lei e ordem” de Nixon e o início do encarceramento em massa; a guerra contra as drogas de Reagan; a expansão do sistema prisional por Bill Clinton; as políticas de habitação segregacionistas; o assassínio de negros pela polícia americana. Não é difícil perceber porque é que a América branca de Trump ganhou as eleições: é só olhar para trás.

Para Camae, preservar a memória, tirar a verdade do cativeiro e lutar contra a exotização e mercantilização da história e dos corpos afro-americanos é uma forma de encontrar um lugar de resistência. “O sistema educacional nos EUA mantém-te afastado da vida real. Somos alimentados com uma série de estereótipos e histórias erradas que vamos mantendo”, considera. “O Fetish Bones também se refere à forma como cooptamos a nossa própria cultura. Vendemo-la a grandes corporações? Damo-la à comunidade?”

É isso que Camae tenta combater no trabalho comunitário que leva a cabo com Rasheedah Phillips no projecto Black Quantum Futurism, na senda do afro-futurismo. Trabalham com aqueles que “não estão online” e são postos de parte “pelo sistema e pela retórica dos media”. “No final do dia isto é uma guerra de classes”, assinala. Inclusive na música. “Se a Solange consegue lançar um disco e ter visibilidade, isso é visto como a experiência dos negros. Mas há muitas outras experiências”, reflecte. “Perguntam-me porque não há mais negros nos meus concertos. A pergunta certa seria: Porque não há pessoas de classes baixas? Que cresceram em bairros sociais como eu? Ser artista implica muitas vezes um certo privilégio.”

Mas há mais coisas que faltam na música – e no mundo. Como redefinir a linguagem “da resistência e da revolução” (“devíamos dizer aquisição violenta em vez de gentrificação, por exemplo”) e “mais mulheres a fazer música de protesto”. Sobre o machismo sistémico, assédio sexual, violência doméstica, cancro da mama. “A representação – ter mulheres a fazer – é importante, mas não é suficiente. É o que escolhes dizer e como escolhes falar em nome de outras mulheres”, afirma Camae, que já partilhou o palco com a escritora feminista bell hooks.

“Temos de perceber também o que é operar de uma maneira activista no underground. Fazer workshops, zines, abrir espaços comunitários, escrever livros, falar com os miúdos na escola”, acrescenta. Mas sem nunca perder de vista o amor-próprio. “Eu não sou apenas uma reacção a algo. Tenho de cuidar de mim própria para poder melhorar a minha mensagem.” Ou como disse a feminista Audre Lorde, “importar-me comigo é um acto de guerra político”.

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