Portugal não é o Chile da Europa

No FITEI, dois espectáculos comprovam que faz sentido não tirar os olhos do teatro chileno.

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Los Millonarios, pelo Teatro La María

Se em Portugal houvesse um Museo de la Memoria como há em Santiago do Chile, talvez no Verão pudesse fazer-se um ciclo de teatro explicitamente político, como o Memoria Escénica em que se apresentou em Janeiro passado este Los Millonarios, sobre advogados que preparam a defesa de um réu indígena (no caso, mapuche). E se tivessem passado 40 anos desde a instauração de uma ditadura, talvez um dos espectáculos para assinalar a data fosse uma remontagem de um texto clássico sobre torturadores, como aconteceu com a montagem de El Señor Galíndez que passou esta semana pelo FITEI. Mas o nosso país não é o Chile da Europa, por boas e más razões. Os antigos edifícios da PIDE em Lisboa e em Coimbra são condomínios fechados e o do Porto faz parte do Museu Militar. Lagos, que teve tráfico de escravos desde 1444, esperou até 2016 para inaugurar o Núcleo Museológico Rota da Escravatura. Talvez por isso este tipo de espectáculos seja seguido tão atentamente pelos espectadores portugueses: põem em cena acções e personagens com as quais nos podemos identificar um pouco, com a aparente vantagem de não termos de nos identificar demasiado.

Na primeira peça, um bando de advogados procura argumentos para defender da acusação de homicídio um homem mapuche, réu que até já se confessou culpado, porque a sua absolvição serve os interesses milionários que, verdadeiramente, protegem. Os causídicos, apesar de abominarem os indígenas, usam cinicamente as muitas razões invocadas pelos mapuches na defesa dos seus direitos, de modo a tentar sensibilizar o júri. A peça do Teatro La María é uma farsa que não deixa pedra sobre pedra. As situações satíricas e o sarcasmo da linguagem denunciam a correção política dos activistas de direitos humanos, e, ao mesmo tempo, revelam a perversidade dos juristas e dos empresários que tentam controlar o território dos mapuches, rico em matérias-primas, historicamente explorado por espanhóis e hoje em dia ameaçado, do ponto de vista dos empresários, claro está, por investidores chineses. Ou seja, o texto desmancha tanto os bons como os maus chilenos, em especial o paternalismo cultural e a condescendência moral com que as elites tratam os outros.

El Señor Galíndez mostra, por seu turno, uma dupla de torturadores que acolhe num apartamento obscuro um jovem aprendiz das artes de bem torturar. Os homens estão reféns das instruções do superior hierárquico (o Galíndez do título), que chegam por telefone, tal como em À Espera de Godot, de Beckett, chegam por recados e em O Monta-Cargas, de Pinter, por uma espécie de intercomunicador. Escrita em 1974, a peça é uma tentativa de ver a tortura do ponto de vista do torcionário, não para a justificar, mas para expor o micro-fascismo de todos os dias. Logo desde as primeiras frases, o humor obsceno aponta as baterias ao códigos de decência e às regras de etiqueta, em nome dos quais agem estes senhores. Aqueles que defendem o pudor e os bons costumes de modo mais veemente são precisamente os primeiros a abusar das posições de privilégio. Nada como o humor, quanto mais grotesco melhor, para abalar as boas consciências.

De Los Millonarios a El Señor Galíndez vai um passo de gigante, correspondente à mudança de alvo do humor negro: no primeiro caso, vemos a luta dos povos indígenas na América, contra o colonialismo interno; no segundo, a luta dos democratas, contra as ditaduras militares. Nem sempre as duas lutas são a mesma. O que estas duas montagens fazem não se resume ao enredo e ao tema de cada peça, nem à forma de sátira obscena adoptada para tratar esses conteúdos. É o trabalho dos elencos, ao encarnar as figuras da vítima e do perpetrador, e ao alternar nesses papéis, que permite aos espectadores a identificação com e a distância de actos tão obscenos. No coração destas peças há ainda uma outra história de violência: a dos homens contra as mulheres. Em El Señor Galíndez, são as prostitutas que estão prestes a ser torturadas; em Los Millonarios, é a empregada, indígena, hiper-sexualizada, o rosto do genocídio. Esse acto de encarnar dos actores é duplamente violento: na aparência, pelo que mostram; em carne e osso, pelo que fazem. Talvez também por isso os portugueses não tirem os olhos dos palcos chilenos. <_o3a_p>

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