Porque é que as empresas não querem dançar com Domingos Sequeira?

No lugar da luz da estrela de Belém que domina o quadro de Domingos Sequeira – que uma campanha de angariação de fundos quer comprar para o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) –, está agora uma moderna bola de espelhos. A ideia deste convite original do bar-discoteca LuxFrágil, em Lisboa, é que se vá dançar pelo Domingos este domingo e em vez da contribuição de seis cêntimos – a campanha Vamos Pôr Sequeira no Lugar Certo (de que o PÚBLICO faz parte) dividiu a pintura em 10 milhões de pixéis para que cada português possa participar com um esforço mínimo ­– é obrigatório pagar, pelo menos, seis euros nesta festa que começa às 18h e dura até à meia-noite. Se se sentir generoso, é só dar “ok” na máquina do Multibanco a múltiplos de seis euros, porque não há limite para as contribuições.

Até sexta-feira, a pouco mais de um mês do fim da campanha, 67% do quadro Adoração dos Magos deste mestre da pintura portuguesa do século XIX já está comprado, depois da avultada contribuição de 200 mil euros da Fundação Aga Khan, anunciada esta semana. O total deverá ultrapassar os 425 mil euros, quando se juntarem as contribuições das empresas EDP e ANA.

“Agora a vitória é nossa”, afirma o director do MNAA, quando lhe pedimos que faça um balanço. “É evidente que a campanha se transformou de um caminho de pedras numa campanha alegre. Um caminho de pedras semeado com calçada portuguesa muito voluptuosa, porque são milhares e milhares de pedrinhas da cidadania. Isso tem sido comovente, emocionante e acho que é um indicador notável de vitalidade do país”, acrescenta António Filipe Pimentel. 

Com a quantidade de coisas já prometidas e iniciativas como a festa do Lux este domingo, “tudo vem reforçar o sentido de vitória, um pouco como as dinâmicas das campanhas eleitorais”.

Quem continua a destoar são as empresas, embora o director do MNAA tenha a esperança de que esta dinâmica possa ser um estímulo para todos os que ainda não aderiram. Para mais, o próprio ministro da Cultura, João Soares, disse esta semana, na cerimónia de entrega do cheque da Fundação Aga Khan, que ia empenhar o seu gabinete a encorajar os empresários a participarem. 

Segundo a empresa Fuel, a agência de publicidade responsável pela concepção da campanha e outro dos parceiros principais do projecto (além do PÚBLICO, entram também a RTP e a Fundação Millennium BCP), até agora o número de contribuições colectivas, categoria em que figuram as empresas, tinha chegado apenas à centena. Já as contribuições individuais ultrapassavam largamente as quatro mil compras, sendo preciso ter em conta que muitas delas contabilizam participações colectivas, como os montantes acumulados todas as semanas na tômbola que está junto à Adoração dos Magos, que durante a campanha está em exposição no átrio do museu.

“O MNAA chamou a sociedade civil e eu não percebo: como é que as empresas conseguem ficar indiferentes?”, pergunta Álvaro Sequeira Pinto, administrador da J. Pinto Leitão, empresa de comércio de madeiras. “Muito embora a empresa seja do Porto, o MNAA é o nosso museu nacional. As empresas portuguesas, além da acção social, têm também uma obrigação cultural. Não podem ficar indiferentes à cultura do país e aos seus problemas. Nem tudo deve caber ao Estado. Todos nós temos um papel cultural e as empresas também.” Falta a adesão das empresas públicas e semi-públicas, diz o empresário, e falta também que as privadas mostrem outra atitude. “Isto demonstra uma coisa tremenda: não há uma percepção da importância que a cultura pode ter no resultado empresarial, da mesma maneira que a base da sociedade também é a base da economia.”

Álvaro Sequeira Pinto acha que o exemplo da campanha de Domingos Sequeira pode levar as coisas a mudarem. “As pessoas não se conseguem organizar colectivamente e o sector empresarial é pouco corporativo. Se as corporações funcionam no âmbito político, mas não se preocupam com estas questões, as associações não conseguem congregar grandes causas, é uma coisa muito latina. Não há uma tradição, como a anglo-saxónica, de as classes se unirem. Há uma falta de sentido colectivo. Alguém tem que dar o salto e dizer que vale a pena. Que o MNAA vale a pena, que o Sequeira vale a pena.”

O atelier do arquitecto Francisco Aires Mateus está a pensar reforçar em 2016 a contribuição feita no ano passado, quando a campanha começou no final de Outubro. “Fiquei abismado que com a nossa contribuição de 1.666 euros fôssemos para aí, na altura, a terceira empresa que tinha dado mais. Fiquei chocado. No fundo, acho que é uma obrigação social. É uma iniciativa tão extraordinária”, diz, acrescentando que os portugueses são generosos, sendo a excepção a cultura. “Consultamos aquela lista de nomes e são tudo pessoas anónimas, na sua grande maioria. E é uma pena que os agentes culturais não tenham a postura de suportar a cultura em vez de serem apenas suportados por ela.”

Outro empresário, desta o vez antiquário Jorge Welsh, que tem loja aberta em Lisboa e em Londres, considera seu dever incentivar uma cultura de participação activa e por isso aparece, com uma participação de 2000 euros, em quinto lugar na lista das entidades. Essa cultura, que inclui também patrocínios académicos ou doações, não é de facto uma coisa muito comum em Portugal: “É extremamente importante que os museus adquiram peças relevantes como esta. É preciso incentivar os outros a fazerem o mesmo. Confesso que me surpreendeu porque não vi grande participação dos antiquários portugueses, mas espero enganar-me. A nível internacional há um diálogo muito mais próximo que em Portugal ainda não existe.”

A angariação colectiva de fundos – ou crowdfunding – não está na matriz daquilo que as empresas costumam apoiar, explica Miguel Barros, administrador da agência de publicidade Fuel: “Estão habituadas culturalmente a estarem mais sós no apoio. Não gostam de ser mais uma numa multidão. É um chip que não têm.”  

À imagem do que se passa lá fora, a verdade é que a campanha foi pensada para ter uma contribuição do mundo empresarial muito mais intensa e as respostas da maioria das grandes empresas contactadas pelo PÚBLICO confirmaram que a iniciativa não estava dentro da estratégia de trabalho da marca ou não chegou em tempo útil. 

“É uma forma errada de olhar para as coisas, muito enraizada, um olhar a muito curto prazo. As marcas procuram apoiar coisas que lhes dêem uma visibilidade rápida. Têm estratégias muito definidas para estar em determinados sectores, mais lúdicos.” Miguel Barros explica ainda que o apoio a um festival de música, por exemplo, dá um retorno imediato, mas não pode ser considerado mecenato, independentemente do aspecto legal, porque as empresas estão a fazer uma aproximação aos seus consumidores. “Nos festivais os consumidores estão a dançar com as marcas. São momentos diferentes do trabalho da marca.”

O comentador Miguel Sousa Tavares sublinhou na SIC, ainda em Fevereiro, a ausência das empresas, defendendo que a campanha é importante exactamente para mostrar que “também podemos ter actos de mecenato, o que existe em todo o mundo civilizado”. Apelava à participação não apenas das grandes empresas, mas também das grandes fortunas. “Nos museus internacionais, há uma ala, um quadro, uma secção que foi doada por alguém. Em Portugal não temos esse hábito, nem em museus, nem hospitais, nem em universidades…” E acrescentava que ficaria muito bem à Liga Portuguesa de Futebol ou ao Rock in Rio darem o seu contributo.

Como não estar?

Se as respostas variaram na forma, são semelhantes no conteúdo e dizem que as empresas não estão a pensar apoiar esta campanha do MNAA. A operadora de telecomunicações NOS (empresa participada pelo Grupo Sonae, a que pertence o PÚBLICO) argumenta que a campanha “não tem enquadramento com as linhas orientadoras da estratégia de patrocínios”. A NOS, explica Isabel Borgas, directora de comunicação da empresa, “está focada essencialmente nas áreas da música e do desporto, em particular do futebol”.

Já a Galp, explica o porta-voz, Pedro Marques Pereira, foi desafiada, mas “já tem um protocolo em vigor com o MNAA”, concentrando o seu apoio na reinstalação da exposição permanente de pintura e escultura portuguesas, cuja abertura está prevista para este ano.

O BPI, através do seu administrador José Amaral, “não tem nenhum comentário a fazer ao assunto” e não esclarece se vai participar no futuro. A Corticeira Amorim responde que não está associada ao projecto.

O grupo Jerónimo Martins afirma, através de Rita Fragoso, do gabinete de comunicação, que tem “um canal muito aberto com o MNAA”, que já apoiaram noutras ocasiões, mas não lhe chegou ainda “nenhum pedido” especificamente dirigido a esta campanha.

A Secil, diz Nuno Maia, director de comunicação, “não tem um posicionamento nesta matéria do património”, centrando a sua actividade nas universidades, no apoio à edição especializada na área da engenharia e da arquitectura e no Prémio Secil, além do trabalho com as comunidades próximas das fábricas. “Têm uma matriz de mecenato.”

Na cerimónia de entrega do apoio da Fundação Aga Khan que decorreu na última quarta-feira, Rui Vilar, vice-presidente do conselho de curadores do museu, fez um balanço, em conversa com o PÚBLICO, sendo da opinião de que a campanha deu um salto decisivo com o donativo da comunidade ismaelita. Espera que o repto do ministro da Cultura tenha efeito nas empresas: “Vai ser um empurrão muito grande para que as empresas portuguesas, e outras entidades que até agora não acorreram, contribuam para a aquisição desta obra que é muito importante para a colecção do museu.” A demora na contribuição, explica, deve-se a ainda estarmos a viver os efeitos da crise, muito prolongada, que afectou as empresas. “Não há muitas empresas em Portugal e há muita apresentação de pedidos. Compreendo que no campo das prioridades da cidadania empresarial as empresas tenham optado por outras áreas.” 

O que se pede às empresas pode ser muito pouco, diz o CEO da Fuel, Miguel Barros. “É óbvio que numa primeira análise posso pensar que é um desperdício, uma dispersão do investimento, mas na verdade são pequenas coisas que vão somando valores emocionais e a longo prazo trazem valor para as empresas.”

Para elas, tal como para todos, seis cêntimos também é suficiente para participar. “Aqueles que dizem que não participam, porque preferem apoiar na área da música estão a pensar em dezenas de milhares de euros. Mas nós estamos a pensar em 1000, em 2000, em 3000 euros. Se houvesse muitas empresas a pôr mil euros, isto estava feito.”

Ao nível das empresas, a contribuição para o quadro devia ser colocada nos apoios reservados para a responsabilidade social da marca e não no âmbito do marketing de produto. “Um consumidor que sabe que a marca ajuda tem uma ligação mais emocional. Podemos virar a pergunta às empresas ao contrário: como é que eu vou deixar de estar?”

Miguel Barros olha para o exemplo do LuxFrágil e diz que só lhe podemos tirar o chapéu, porque através da responsabilidade social consegue fazer “uma coisa altamente envolvente, original e mostrar que se preocupa com a cidade”. “Venham aqui dançar connosco, vamos abrir no domingo…”

De facto, o bar-discoteca abre de propósito este domingo para a festa Domingos no Lux, depois de ter recebido um pedido de ajuda-desafio do museu. Pedro Fradique, um dos programadores do espaço, explica que a bilheteira irá toda para a campanha, numa compra colectiva que tem esperança que seja grande. Foram desafiados pelo MNAA e não podiam deixar de participar, responde: “Tem que ver com uma atitude – é este quadro, mas podia ser outro, de deslocar o eixo da responsabilidade para as pessoas.” 

Estamos todos convidados e o traje, diz LuxFrágil, é “como se queira” (ler em voz alta). 

Dar uma insignificância?

O empresário José Roquette, dono dos vinhos Esporão, que foi um dos grandes mecenas na compra da pintura de Álvaro Pires (considerado o primeiro pintor português) para o Museu de Évora em 2001, diz que actualmente, com a crise que estamos a passar, “é sempre uma dificuldade encontrar encaixe para o mecenato cultural”. “Tem-me preocupado mais o apoio social, como o Banco Alimentar, ou a disponibilidade para receber refugiados. Não vou estar a defender que não seja uma linha correcta, mas chamam-me mais outras direcções.” Está ainda a “amadurecer” se vai participar ou não, porque também não “pode dar uma insignificância”.

O coleccionador António Cachola, que deu origem ao Museu de Arte Contemporânea de Évora, não se envolveu ainda na campanha por falta de tempo. “Tenho a intenção de participar. Mas participarei como pessoa singular, como anónimo.”

Uma das surpresas da lista dos patrocinadores colectivos é a presença das autarquias, como a de Cantanhede. João Moura, o presidente da câmara, viu uma referência à campanha na imprensa que apelava à iniciativa das pessoas e foi sensível à questão de ser uma peça importante para o museu. “Fomos mais longe e achámos que colectivamente temos essa responsabilidade nesta causa nacional. Pegámos no mote da campanha, seis cêntimos por cada português, fomos aos censos de 2001 com a população do concelho e cada munícipe tem a sua quota parte, tem a sua responsabilidade.” A ideia foi aprovada por unanimidade na Câmara Municipal.

O mesmo fez o presidente da Junta de Freguesia de Campo de Ourique, Pedro Cegonho: “Quis dar um pontapé de saída com um pixel por cada cidadão recenseado. É um apoio simbólico à medida das nossas possibilidades. Há uma interactividade muito grande entre o museu e a Junta de Freguesia de Campo de Ourique que justifica o nosso apoio.” No Natal, a título individual, tal como já fez o empresário Álvaro Sequeira Pinto, acrescentou uma contribuição só sua: “Foi o meu presente para o museu.”

Entretanto, como presidente da Associação Nacional de Freguesias, enviou, na semana passada, uma carta oficial com uma minuta que facilita a participação das 24 juntas de freguesia de Lisboa. “É uma minuta burocrática que fundamenta o interesse público do projecto e a atribuição de um financiamento.”

Pedro Cegonho considera esta campanha uma versão moderna das subscrições públicas do final do século XIX ou do princípio do XX, através das quais surgiu muita da arte pública em Lisboa, principalmente escultura. “Com esta campanha, vamos adquirir uma obra que será um expoente máximo do museu. Enquanto decisores públicos, cidadãos ou empresários temos de participar.”

O presidente da Câmara de Montalegre, Orlando Alves, diz que é importante participar nas causas nobres dos outros e não só nas nossas: “Trata-se de um acto de cidadania e de grande expressão cultural para aumentar o nosso depauperado património cultural. Se o MNAA está a pedir que os portugueses adiram e se envolvam, mais sentido faz que as empresas dêem o exemplo. As autarquias têm que ser faróis, ao viverem a cultura todos os dias nas suas actividades, mas também ao aderirem a causas extraordinariamente nobres.”

Já a autarquia de Lisboa explicou, através da vereadora da Cultura Catarina Vaz Pinto, que “a câmara ainda não decidiu sobre a sua participação”.

Logo a seguir à Fundação Aga Khan, é a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) que aparece em segundo lugar na lista das entidades colectivas com um contributo de 10 mil euros. O presidente da SPA, José Jorge Letria, diz que a decisão da administração tem tido muito boa aceitação entre os sócios, numa associação que representa 26 mil autores: “São os autores do presente a apoiarem um autor do passado.”

Mesmo a SPA, na sua história de mais de 90 anos, não tem grande tradição de empenhamento: “Sensibilizar um colectivo não é fácil. Em Portugal, não há uma mentalidade que se traduza numa participação colectiva neste tipo de acções.”  

No futuro, o director do MNAA acredita que esta campanha vai ser replicada com outras obras, outro tipo de património. “Atingiu o nervo que importava, a responsabilidade é de todos e não só do Estado.”

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