Políticas culturais: o que não se diz é mais importante do que os anúncios

O gestor cultural analisa aqui as propostas dos cinco partidos políticos com vocação parlamentar e nas quais a cultura tem direito a capítulos substantivos. Além dos anúncios, é importante olhar para as práticas anteriores destes partidos e dos seus protagonistas, o modus operandi e as ideias latentes.

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O PS, assumindo uma relação de inclusão da RTP no Ministério da Cultura, identifica esta colaboração como uma forma de produção de sinergias e de economia de escala Pedro Cunha/Arquivo

Numa análise dos programas dos partidos políticos com vocação parlamentar ou executiva torna-se evidente que, para estes, o Estado tem interesse e legitimidade em intervir naquilo que consensualmente se designa como "cultura", embora o termo em si tenha um significado tão flutuante que pode integrar as maiores contradições.

Não é por isso de estranhar que na redacção destes textos se apresente a estrutura do Ministério dos Assuntos Culturais seguindo o modelo criado em França por André Malraux no pós-guerra, assumido pela maioria dos Estados europeus, sul-americanos, africanos e canadiano, com diferenciações importantes no universo anglófono e contrastando em muito com o americano e em parte com o asiático.

Esta estrutura comum não obsta a que não haja divergências nas propostas programáticas, nomeadamente no que separa os partidos de esquerda e de direita. Durante anos a direita sobrevalorizou o património contra a arte contemporânea, que, por sua vez, era prioritária nas políticas de esquerda. Esta oposição, aparentemente muito simplificada, sempre existiu e, embora hoje pareça diluir-se, ainda subsiste no modo de uso.

Os partidos de direita esperam do património uma rentabilização, usam-no para propaganda nacionalista e em relação à arte contemporânea privilegiam o decorativo, rondando muitas vezes o kitsch; a esquerda, como podemos ver na generalidade dos partidos portugueses, tem uma visão do património como uma herança contraditória e encara a arte contemporânea como um modo de conhecimento crítico. Também é um facto que dentro desta divisão há por vezes comportamentos inesperados.

No entanto, a nítida divisão entre a esquerda e a direita pode ser confirmada pela prática dos governos de direita. A forma como os últimos pretendem alienar a gestão pública, atirando-a para a responsabilidade do mecenato, ou como "terceirizam" a gestão de palácios e outros monumentos rentáveis são exemplos. Subjacente a esta decisão está uma visão da actividade cultural como maioritariamente de entretenimento e de lucro. Oposta a esta visão, a esquerda considera fundamental a dimensão pública das actividades culturais e artísticas associadas ao desenvolvimento de mecanismos de literacias várias.

Se o Estado pode e deve intervir na cultura, é bom ter consciência de que, ao fazê-lo, cria sempre mecanismos e dispositivos de controlo, tanto mais quanto mais se lhe atribuir o estatuto de uma função reguladora justa. Essa é a herança dos Estados modernos, mesmo dos mais democráticos. Cabe pois aos governos de esquerda a consciencialização deste facto e a defesa de uma ecologia das políticas culturais quando intervêm através das suas organizações. Para tanto é um pressuposto fundamental assumir que uma política cultural é uma política de mediação, sendo o seu destinatário as pessoas. E para tanto deve ser considerado:

a) falar do cultural como um sistema de relações entre pessoas através das obras, e não de cultura;

b) deixar de identificar política cultural com política das artes – os artistas não são os principais destinatários das políticas culturais (tal atitude acaba por guetizar as próprias artes);

c) assumir a política cultural como uma forma de contribuir para a produção e transmissão de conhecimentos, embora estes tenham formas mais simbólicas do que pragmáticas.

Uma avaliação dos programas de política cultural anunciados passa por critérios simples: coerência com todo o programa de governo, prática anterior de governação, credibilidade dos seus protagonistas e linguagem utilizada.

No que diz respeito ao programa apresentado pela coligação PSD-CDS, ele é coerente com o restante programa na sua prolixidade – uma lista infinita de anúncios, muitos dos quais relativos a medidas que, iniciadas por governos anteriores, ou foram por esta coligação extintas ou aparecem de uma forma desconexa. A prática anterior desta coligação extinguiu o Ministério da Cultura – com todo o impacto negativo em termos simbólicos e de perda de peso político – e colocou a governação da cultura nas mãos de um secretário do primeiro-ministro para a Cultura, em qualquer dos casos, impreparados até para esta função. Esta, aliás, é a terceira avaliação negativa do programa que decorre de não se ver na coligação na actualidade protagonistas preparados para tais funções. A lista apresentada tem contornos populistas, porque, apesar da incoerência dos anúncios, destina-se a um universo de auditores que é o universo das práticas culturais tido como maioritariamente à esquerda, com o propósito de angariação de votos. A linguagem utilizada, pretensamente moderna – há uma espécie de camp provindo do contributo do CDS –, é de contornos nacionalistas e o “economês” é a sua semântica.

No que diz respeito ao conjunto dos partidos de esquerda com programas ou pessoas com experiência parlamentar ou executiva, há aspectos comuns que estabelecem pontos programáticos, havendo também, contudo, diversidades decorrentes das histórias dos respectivos partidos, da análise do cultural, das expectativas de governação nesta área e do carácter mais reivindicativo ou mais proactivos dos mesmos. E aqui a linguagem estabelece as grandes diferenças.

A todos os partidos e coligações – Livre/Tempo de Avançar, CDU, Bloco de Esquerda e Partido Socialista – é comum a existência imperativa de um Ministério da Cultura (MC) a que se associa a urgência do aumento do orçamento. Livre/Tempo de Avançar propõe chegar ao fim da legislatura com 1% do OE, o PS assegura o aumento sem o quantificar, tal como a coligação CDU, o BE, que se assume ainda com um programa de partido contrapoder, reivindica 1% logo no primeiro ano da legislatura.

Outro aspecto comum a todos os partidos de esquerda é o uso da televisão e da rádio como instrumentos fundamentais da política cultural. Expressando uma visão democrática da relação dos Estados com estes instrumentos, nota-se a ausência de qualquer intenção de associar esta colaboração com um ministério da comunicação com todos os contornos de um ministério da propaganda.

O PS, assumindo uma relação de inclusão da RTP no MC, identifica esta colaboração como uma forma de produção de sinergias e de economia de escala. A todos é comum a intenção de cooperação entre a educação, a internacionalização e a política cultural. Tais intenções decorrem sempre de programas de colaboração que, sendo sempre minoritários, podem ser eficazes – contudo, só uma decisão radical de uma legislação zero, à maneira de um orçamento zero, poderia criar uma organicidade maior nestas colaborações.

O Livre/Tempo de Avançar proclama com alguma ingenuidade que “as artes visuais são fundamentais para a representação/construção de um mundo mais humanizado” (Serão? E a serem serão só estas?), anunciando com enorme pertinência e sentido de justiça que “dos agentes culturais se deve esperar o sentido dos deveres e da responsabilização”.

É reconhecida a capacidade de gestão e de políticas culturais de muitas autarquias geridas pelo PCP, algumas delas modelares. O programa apresentado reflecte essa experiência, pretendendo transpô-la para um governo central, aqui utilizando uma forma reclamativa. A associação da festa com a reivindicação é matriz das políticas culturais do PCP, herdadas na relação da natureza com a cultura do Iluminismo francês e consubstanciadas nas festas dos partidos comunistas europeus, como a antiga festa do PC francês e a Festa do Avante!, uma das primeiras experiências de internacionalismo artístico em Portugal. Assim, tem toda a coerência a crença na cultura como aprendizagem da democracia e a defesa da acessibilidade às práticas culturais. O dilema com que este programa se confronta é com a proposta de uma cultura para o povo. O que quer dizer "povo" aqui? A classe média suburbana? Os desempregados? Ou é um povo idealizado, mas que na verdade não existe? Perante um programa de entretenimento medíocre das televisões e uma remota festa de origem operária que escolherá este "povo" do século XXI? É um dilema do PCP que é um dilema de toda a esquerda. Os Verdes associados ao PCP e que têm no seu manifesto a defesa de uma vida ecológica deveriam produzir algum pensamento sobre esta questão.

Se o Livre/Tempo de Avançar tem como questão inicial "Governar para quê e como", o PS responde "Governar melhor, governar diferente". Para além da ligeireza da frase, o que é de analisar é o que é diferencial no seu programa que gera expectativas de que a governação seja melhor. O PS é um partido com uma história de governação na área cultural importante – foi o partido que criou em Portugal o Ministério da Cultura, teve muito bons protagonistas, outros nem por isso, mas tem uma experiência de governação e de legislação nesta área que são determinantes, sobretudo tendo a expectativa de vir a ser o próximo governo. Neste aspecto há um conjunto de propostas que, não sendo novas, aparecem porque foram iniciadas em governos anteriores do PS e interrompidas e, portanto, propõe-se retomá-las e há ainda as diferenciais que são as que podem responder a uma política cultural nos tempos de hoje. Destas, a que gera mais expectativa é a reestruturação das várias instituições e organizações que dependem do MC, o que supõe uma nova lei orgânica que privilegia a autonomia e a descentralização de competências. O programa, que combina aspectos de política geral – e é aqui que coincide com alíneas dos outros partidos de esquerda – com aspectos demasiado particulares, assume a necessidade de investimento, ou seja, sabe que sem recursos financeiros não é possível implementar acessibilidades gerais, literacias, internacionalização e dignificação do trabalho cultural, mas espera-se que neste momento de capitalismo assanhado proponha formas de investimento que ultrapassem a expectativa do mecenato. Também neste programa a acessibilidade cultural está associada à democracia. É um aspecto determinante, porque, na verdade, a democracia é uma aprendizagem constante; ninguém nasce democrata, pode aprender-se a sê-lo, mas isso implica que uma política cultural admita ser muitas vezes uma política contra os gostos e as tendências maioritárias. É uma questão com que um governo PS terá de se confrontar no sistema de relações culturais.

O BE é o partido que, pela sua linguagem, mostra ter um programa essencialmente reivindicativo. E do conjunto das ideias mais reivindicativas há dois aspectos determinantes: um que diz respeito aos direitos dos trabalhadores da cultura e outro em relação ao digital, tema também aflorado pelos outros partidos.

A questão dos direitos e do trabalhador cultural coloca definitivamente este tipo de actividade sujeito à lógica das relações de produção e de mercado no capitalismo actual com tudo o que tem de assustador. Mas é importante esta assunção, porque é a recusa do trabalho intelectual e cultural como passível de ser gratuito, fácil, sem competências próprias.

O aspecto do digital é muito bem colocado neste programa porque da forma como o digital for utilizado, gerido e controlado, assim se garantirão a preservação cultural, a criação contemporânea, a acessibilidade e a independência do país.

A relação de todos os programas com a Europa é maioritariamente focada na expectativa de financiamento de fundos europeus. Tal exige uma preparação técnica invulgar, mas principalmente uma política de auto-representação do país e da sua produção cultural que seja diferenciada na UE e, passadas as décadas de solidariedade e de entreajuda entre governos europeus, é importante preparar uma política de internacionalização que será também de disputa de territórios de influência e em que a questão do cultural é também um campo de rivalidades.

Gestor cultural e ensaísta

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