Podia ser actriz. Mas para quê se pode ser escritora?

Ana Teresa Pereira podia ser personagem dos seus livros. Com 54 anos publicou 36 livros e mantém-se um enigma. Parte da literatura, do cinema, da pintura para construir versões de uma mesma realidade. O seu tempo e o seu espaço são circulares como a ilha onde nasceu e vive numa casa com jardim onde se recolhe dos olhares. Uma conversa no Funchal sobre um imaginário sempre em construção

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Há junquilhos no canteiro. Amarelos e brancos. Quando desce à cidade passa por eles e o perfume devolve-lhe o cheiro de casa que é aquela ilha com que nunca se conformou mas de onde não sai a não ser na ficção e, mesmo assim…

Não há um lugar definido. Real e imaginário cruzam-se nas mesmas coordenadas. As paisagens com que se construiu desde a infância, como o Paul do Mar, o Pico do Areeiro, onde viu a primeira neve da sua vida ou a estrada antiga do Seixal, a ligar o Funchal ao Norte da ilha, misturam-se com uma paisagem paralela feita pelas imagens dos livros que leu sobre cidades grandes e vastas terras com brumas fora da geografia e do tempo circular da ilha onde vive e nasceu em 1958.

É assim que real e ficção, ou o que a ficção foi sugerindo ao real, se tornaram o lugar onde habita Ana Teresa Pereira, escritora tão esquiva ou intangível quanto o universo literário que foi criando desde 1989, ano em que publicou Matar a Imagem (Prémio Caminho Policial) e começou a traçar o mistério que é um prolongamento da sua vida, com personagens e cenários que se repetem a partir de referências literárias, do cinema, teatro, pintura, música, jardins e onde nada é linear e por vezes é a literatura a provocar o real.

“Escrevi sobre as casas e suponho que foi por isso que as encontrei”, conta Clive, o escritor de Morre, Meu Amor, conto que integra o seu mais recente título, As Velas da Noite, livro número 36 de originais de uma carreira que começou tinha a escritora 31 anos. Tem agora 54.

Está sentada à mesa de um café, depois do caminho que partiu desde o aroma dos junquilhos. Dessa casa com jardim e livros, gatos e cães, desceu até à baixa da cidade, na ilha que é a do isolamento e da fuga, outras duas constantes literárias. Gosta desse vaguear diário onde passa anónima entre turistas e cumprimenta os do costume. A tragédia do seu isolamento é a mesma que a tornou familiar com pintores, escritores, actores, realizadores. “Eu não sou um bicho-do-mato.” Olhos bem abertos, boca entretida a chupar um rebuçado, tentando desmentir o mito que a dá como inacessível. O café fica perto da Sé do Funchal mas a entrada aponta para o lado contrário ao dos circuitos dos cruzeiros e hotéis. É aí que abre o bloco, tira uma caneta, mas não escreve. Por enquanto. Pergunta. Quer saber do interesse por si. “Vivo numa ilha e acho que as pessoas se esquecem de me procurar”, continua. 

Mas não é bem assim. Consente que não está sempre disponível para falar de si e do que faz. “O que importa está nos livros.” Responde a alguns emails, nem sempre atende o telefone, quase nunca aceita falar em público. As poucas entrevistas que dá são quase todas por escrito. As fotos que dela se conhecem mostram uma rapariga de trinta anos. Estou filosofia, foi guia-intérprete a turistas na Madeira. Escreveu em jornais e revistas, crónicas regulares. Edita em média dois livros por ano, está em colectâneas, ganhou muitos prémios, tem a crítica a louvar-lhe o que faz. Mas não é best-seller. Vive do que escreve, sublinha, e consegue porque publica muito, mas vive cada vez de forma mais despojada, fazendo cada vez menos viagens em busca de teatros, livros velhos, parques com cores de Inverno. A pequena fortuna pessoal que herdou foi-se gastando ao ritmo lento em que vive, lendo, vendo filmes, ouvindo música, vagueando. Gosta do termo. Usa-o na escrita. Sugere errância e perdição. 

“Não sei falar de mim. Podemos falar de cinema?Aceitou conversar, mas na conversa intercala momentos de enorme abertura com outros de retracção. Inacessível? Bruma é uma outra palavra dela que cabe no contexto e que contrasta com a clareza do rosto e do olhar. Podia ser dela o rosto de uma das suas personagens e, tantas vezes, dá a sensação que sim, que ela é mesmo isso, um eu que trata com familiaridade ou estranheza, recorrendo a nomes que vêm dos seus livros como auxiliares. Tom, Clive, Kate, Bogarde… vivem com ela, como se fossem ela, num jogo de autobiografia que nunca se sabe onde começa ou termina.

“Eu também sou as minhas personagens… Mas sou uma mulher que escreve e que se fosse outra coisa talvez fosse actriz. Mas para quê ser actriz se posso ser isso tudo nos meus livros?” Actriz, encenadora, realizadora, aquela que decide quais as personagens e que lugar ocupam na cena onde o final nem sempre é o que mais interessa, mas sim as possibilidades que levam a ele. A voz sai sem pressa, o rosto pousado numa mão enquanto a outra desenha palavras num bloco aberto na mesa. Os fantasmas, os sonhos, o duplo, o jogo de espelhos são temas inevitáveis. Estão nos livros, embrulhados num ambiente onírico, como que sempre pairar. Ela fala em “levitar” como caracterizador de algo. Não quer diz palavras que não ver coladas à sua imagem, tanto quanto ela tem controlo sobre ela. Por isso se demora. Depois há a outra imagem, a que os outros fazem de si e construída pelos (ou nos) seus silêncios. O não dito tão importante quanto tudo com que sai com contenção, vertigem ou fuga. 

Nos livros, como na conversa, há algo que se pressente como num sono de que se acorda para recordar um sonhado difuso. Onde se está? “Talvez seja como uma alucinação, não sei…”, continua, para tentar explicar a origem do que escreve e, nisso, revelando as hesitações, o fluxo do pensamento, como se naquele discurso que lhe vai saindo se estivesse a construir a si mesma em frente ao interlocutor, sem receio de mostrar que pode ser frágil, mas sendo forte quando o olha nos olhos a dizer que antes de tudo pode vir a decisão sobre o perfume de uma personagem. “Sim, mas antes vem um rosto e esse rosto pode ser real”, como o rosto de um actor que “rouba” para ser também actor nos seus livros. A literatura de Ana Teresa Pereira é um jogo de representação sobre representação sobre representação, em camadas sucessivas. Uma personagem que pode ter o nome ou o rosto de um actor de verdade como Jeremy Irons, Keira Knightley Gabriel Byrne pode aparecer em vários livros a jogar diferentes papéis sem se esgotar, levando para a ficção, até ao extremo, o imenso jogo de possibilidades que a vida impede, mas que a literatura permite. 

A escrita enquanto versão do real
Por isso Tom tem tantas vidas nas suas histórias. “Tom não tinha muitos amigos. Não dava grande importância à amizade, à família ou ao amor”, caracteriza-o em O Lago (2012, romance vencedor do Grande Prémio de Romance e Novela da APE). Ele é um dos pilares de Ana Teresa Pereira, uma das suas obsessões, talvez a mais autobiográfica de todas as “pessoas” que criou. Mas Tom não é ela, continua a sublinhar. Ele é o escritor de sucesso em O Mar de Gelo (2006), e aquele que em A Pantera (2011) se retira para uma casa com jardim para ler e fumar. Não se quer separar dele. Nem dos outros. Não veio aqui para falar de um romance em particular. Eles funcionam numa interdependência, como se a sua obra fosse sempre a mesma. Não é. Mas é como se quem lê um romance, uma novela, um conto ou uma peça de teatro de Ana Teresa Pereira não saísse do mesmo ambiente. Estão lá todas as referências e o mesmo mistério atravessa-os. Há um enigma, policial, por exemplo, que se resolve, mas o maior enigma permanece insolúvel. Alucinação, volta. Vício. “A leitura é um vício, como o cinema”. Não sabe quantos livros leu nem quanto filmes viu. Gosta de ver em casa, ao serão, em sessões contínuas. E os rostos perseguem-na. Leva-os na cabaça, no bloco de notas. Cria a partir deles, versões de uma realidade. “O real é isso, não é. Sempre uma versão”, persiste.

Nas suas versões fala das personagens como se lhe fossem autónomas e ao mesmo mo tempo dependentes. Fazem parte da tal essência feita de sonho, vertigem, alucinação, um enigma que ao mesmo tempo alimenta e desvenda. Há uma mão que as agarra e logo as perde para o que são. E são um mistério. Pode-se intuir ou definir como se vestem, que perfume usam, onde moram, que filme vêem, mas elas não se esgotam nunca e é essa a tal essência. Por isso volta a elas. Não se esgotam nem se revelam a cada história que vivem. “Sinto-me uma encenadora e cada livro é como uma peça onde faço movimentos, dou falas e onde há sempre escritores.” Porquê? “Porque como é que se pode viver sem livros? Eu sei que se pode, mas eu não me imagino sem eles. Pode-se escrever livros a partir de livros, mas sem livros pode-se escrever o quê?” Ainda em Morre, Meu Amor, Clive, o escritor de contos fantásticos que noutros livros já foi actor, acredita em primeiras versões, e por isso nunca relê. Mas Clive, como Tom, não é ela. E é. E gosta de pensar os seus livros como pesadelos. E ela? 

Os livros dos outros, como essas personagens saídas de versões do real, deram-lhe a paisagem e a linguagem. As palavras são Deus? Cathy, a actriz no quarto conto que compõe este volume If I Should Wake Before I Die, deixou de “acreditar no sentido mais profundo da palavra”. E isso foi como “alguém deixar descreditar em Deus”. A resposta está na escrita, deixar de acreditar nela é a ruína do escritor. Ana Teresa Pereira acredita nisso e isso não se pode esquecer nunca quando se fala dela. Aprendeu a ler com o pai, um médico que a enchia de livros e tinha estantes cheias de livros ingleses. Se ela tem uma língua para imaginar, talvez seja mesmo o inglês. “Muitas vezes as frases saem-me em inglês”, admite. Se está em Londres é em inglês que pensa. Passa a palavra para blocos que preenche com apontamentos e leva sempre com ela. Na mala de mão ou quando sai apanha um avião. A ilha é isolamento e viagem, outra vez. “Às vezes é preciso sair. É na ilha é tudo um pouco claustrofóbico.” Concorda quando se diz que o seu português soa a inglês no modo como as frases se estruturam, na cadência? “Talvez, mas não posso fazer nada contra isso.” Às vezes traduz esses apontamentos, passa-os para o seu idioma. Escritora portuguesa. E se houvesse som, a escrita tinha sotaque madeirense, do Funchal, com frases de Truman Capote, Iris Murdoch, William Irish, Daphne du Maurier, Henry James, Shakespeare, Tennessee Williams, banda sonora de Van Morrison, por exemplo, imagens de Alfred Hitchcock, Michael Powell e o seu The Edge of The Word (filme de 1937) seria o Paul do Mar num imaginário tão contaminado. Por Rothko, por Johnny Guitar, o filme de Nicholas Ray, de 1957, outra referência ou repetição em Ana Teresa Pereira.            

Este volume As Velas da Noite, nome retirado ao conto que começa com a ideia de um realizar a dirigir o olhar de uma actriz e se fixa numa representação de Rebecca, o livro de Daphne du Maurier adaptado ao cinema por Hitchcock, sintetiza de forma obsessiva e eficaz muitas das referências de Ana Teresa Pereira. É exemplar acerca deste universo esquivo, compulsivo, onde a repetição é trabalhada de forma a parecer sempre original, mesmo sabendo-se que tudo isso é ilusão. “É um jogo”, volta a dizer uma personagem, Jenny, a rapariga que é muitas raparigas nos livros de Clive, o escritor, um jogo de que ela não conhece as regras. Elas estão com Clive, que lhe tenta de explicar porque  está obcecado por ela enquanto personagem e sempre pela mesma história. É o segredo dos livros e cordel (…). As pessoas que lêem não são muito diferentes das crianças. Querem ler a mesma história uma e outra vez.” 

Talvez seja isso. Mas seria apenas um princípio. Anata Teresa não fica por primeiras versões. Lê, reescreve, faz o complexo parecer simples porque essa aparente simplicidade lhe interessa. Mas há uma nostalgia, uma luz que torna indefiníveis os traços, como um quadro de Turner, ou como no jardim de Alice, um buraco onde se entra e de onde não se sai igual.  

 
 

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