Pode-se rebentar de esperteza

No seu mais recente romance, a escocesa Ali Smith arrisca um jogo de linguagem em que a charada não se fica pela crítica social. A esperteza tem limites, escreve ela, e não os ultrapassou

Talvez o jogo se saiba perdido à partida. Mas (e como se há-de ver o mas, neste livro, é mais do que uma conjunção) “é importante conhecer a história e a História das coisas, mesmo que tudo o que soubermos seja que não sabemos nada”. Parágrafo, até ao pensamento seguinte: “O facto é que a história é composta, na verdade, por toda uma série de coisas que ninguém conhece.” Estamos na cabeça de uma rapariga de nove anos, Brooke Bayoude, menina-prodígio, filha de professores universitários, única criança num universo marcado pela solidão e pela pretensão, pela perda, pela ausência, pelo silêncio e pelo sarcasmo que embrulha tudo isso com boa dose de inusitado e muitas referências. Ela, como os outros, está a aprender o que fica, porque fica sempre alguma coisa, das relações, mesmo as mais breves. Brooke, a criança dotada, é o mais recente achado literário da escocesa Ali Smith. É ela que lhe dá a possibilidade da ousadia que é este O Passado é um País Estrangeiro.

Natural de Inverness, na Escócia, onde nasceu em 1962, Ali Smith é uma das mais criativas escritoras da sua geração. A Acidental, romance que lhe deu o Whitbread Award e a levou até aos finalistas do Orange e do Man Booker Prize, em 2005, alargou o culto da escritora que não perde uma oportunidade de fazer crítica social, aliando inteligência e humor mordaz no modo como narra uma mediocridade mascarada que associa quase sempre aos anseios da classe média. São assim os seus romances e contos, centrados em personagens em ruptura com as rotinas tidas como boas. O romance de que aqui se fala não é excepção a essa regra de Smith.

Se em A Acidental o aparecimento fortuito de uma mulher vai perturbar as férias de uma família, em O Passado é um País Estrangeiro o convidado de um jantar na casa de uma família “exemplar” fecha-se no quarto de hóspedes no espaço de tempo entre o prato principal e a sobremesa, e ali fica durante meses, barricado, e originando um circo que ultrapassa os media e mexe com os valores da cidade de Greenwich, a do meridiano. O homem chama-se Miles Garth, apresenta-se como consultor ético e é vegetariano. É à volta deste episódio que se constrói, de forma intrincada, com mudanças de voz e de tempo dirigidas de forma minuciosa, o jogo que o título original, There But For The, promove. Um título que esconde tanto ou mais do que revela, como as histórias reais aqui comandadas com dose generosa de fantasia.

There But For The foi o primeiro quebra-cabeças para o tradutor, Helder Moura Pereira. É uma expressão calculada, pensada para ser incompleta, que inquieta e apela ao sentido mais lúdico e criativo de um leitor a quem é pedido sempre um papel activo ao longo de um romance “quase a rebentar de esperteza”, para usar a ideia de uma das suas personagens. Quase. Em inglês, estas quatro palavras servem a Ali Smith para abrir, respectivamente, cada um dos quatro capítulos — quatro modos de olhar para Miles por quatro pessoas que com ele privaram. Além de Brooke, há Anna Hardie, com quem Miles estivera durante duas semanas, 30 anos antes, numa viagem de jovens aspirantes a escritores; Mark Palmer, amante de musicais, homossexual atormentado por perdas, o homem que o convidou para o jantar mal o conhecendo; e a louca May Young, uma velha que vai delirando nas suas ligações ao homem barricado. Na edição portuguesa, a opção foi alterar o título, isolando no interior as palavras da expressão original para abrirem cada um dos capítulos. “Era”; “mas”; “porque”; “o” nunca chegará a ser “Era Mas Porque O”. O título foi antes retirado a um romance de L. P. Hartley, O Mensageiro (adaptado ao cinema por Harold Pinter num filme de 1971 realizado por Joseph Losey). “O passado é um país estrangeiro”, lembrara Anna a Miles na tal viagem pela Europa no Verão de aspirações literárias.

São muitos os desafios que o livro coloca ao tradutor. A charada não é apenas social ou cultural. “Muitas das pessoas com quem Anna falara tinham problemas a nível da expressão, quer por questões de tradução quer devido a toda uma série de golpes que a vida lhes desferira e as fizeram desconfiar das palavras. Ou ambas as coisas. A questão da língua, já de si, constituía uma barreira que feria. Como podia o que lhes aconteceu ser dito numa única língua, quanto mais ser ainda transcrito para outra?” Anna lidara profissionalmente com os mais desprotegidos. Despediu-se. É uma inadaptada. Está falida quando Genevieve Lee, a anfitriã do jantar, lhe manda um mail depois de a descobrir entre os contactos de Miles. É ainda Anna quem afirma: “Fosse em que língua fosse, tudo andava à volta do conceito de casa.”

Ali Smith tem na linguagem um dos principais protagonistas deste livro — explora-lhe sentidos, estica a corda das hipóteses ou truques experimentais até parecer que ela vai rebentar. É aí que Brooke se releva fundamental num romance que mostra uma vez mais a incapacidade de Smith para se acomodar. Brooke é exímia nos trocadilhos, na paranomásia, na vontade de desconstruir e baralhar para dar quase sempre diferente, intercalando humor e inteligência, cultura pop (sobretudo na música e no cinema) e as mais exigentes referências literárias. A charada é difícil, mas o prazer de jogar existe mesmo sabendo que a derrota é provável.

“O facto é o seguinte: imagine-se um homem…” Talvez não seja bem um começo de livro, mas uma ideia de arranque, como diria ainda Brooke no meio de tanta imaginação. 

Sugerir correcção
Comentar