Planear a edição de discos é cada vez mais difícil

Mais do que planificar com antecedência o lançamento de discos, o que editoras e artistas fazem hoje é reagir aos acontecimentos, principalmente quando eles vão parar à Internet ilegalmente

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Madonna KEVORK DJANSEZIAN/AFP
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Björk MIKE /REUTERS

Nos anos 1980 e 1990, quando a indústria da música experimentou o apogeu comercial, o lançamento de um disco podia ser preparado ao milímetro pelas editoras e constituía uma ocorrência vivida com ansiedade pelos fãs. Com o advento da Internet a aura de acontecimento que rodeava os grandes lançamentos não se perdeu, mas alterou-se muito.

Em vez de um modelo para operar passaram a existir inúmeros. Basta pensar em alguns dos lançamentos mais aguardados deste ano: Madonna e Björk editaram digitalmente novos álbuns meses antes do previsto, depois de terem sido disponibilizados ilegalmente na Internet.

Já o álbum do americano Kendrick Lamar chegou ao iTunes e Spotify uma semana antes do anunciado e os ingleses Blur deram a conhecer na semana passada as canções de The Magic Whip, a lançar a 27 de Abril, num concerto transmitido via YouTube.

No limite, hoje, os cantores ou grupos que se movem no centro do mercado para massas procuram a sua própria forma de actuar. Como resultado dessa dispersão, a maneira como um disco é posto no mercado passou a despertar tanta ou mais atenção do que o próprio disco. Basta pensar nas acções cuidadas que rodearam as últimas edições dos álbuns de David Bowie, Beyoncé, Kanye West, Daft Punk ou dos U2.

O problema é quando se concebe uma estratégia e ela nem chega a ser concretizada porque os discos foram disponibilizados ilegalmente na Internet meses antes da sua publicação oficial, obrigando artistas e editoras a reagir às circunstâncias, em vez de as planearem.

Foi isso que aconteceu nos últimos meses com Madonna e Björk. Em Dezembro do ano passado várias canções inacabadas de Madonna foram parar à Internet e mais tarde apareceram as 25 canções que constituíam a edição ampliada de Rebel Heart.

Em consequência, e depois de Madonna ter apresentado queixa junto das autoridades, foi detido Adi Lederman, um hacker israelita que supostamente terá acedido ao computador pessoal da cantora. Como reacção, Madonna optou por colocar à venda de imediato algumas canções na loja iTunes, tendo o CD sido editado há cerca de três semanas.

Os tempos são outros, o mercado discográfico alterou-se, não sendo por isso fácil dizer se existe uma relação de causalidade com o sucedido, mas Rebel Heart é, até agora, o disco da cantora dos últimos 20 anos com resultados comerciais mais modestos.

Uma coisa é certa: o plano de marketing teve de ser revisto. Normalmente este tipo de lançamentos de grande impacto são doseados com a estreia de canções, aparições na TV, entrevistas a publicações e acordos com lojas da Internet ou/e lojas que vendem CD.

“Quer a Madonna, quer a Björk tentaram minimizar estragos, lançando de imediato, legalmente, via digital, a música que tinham disponível”, diz a directora de desenvolvimento de negócio e digital da Universal Music Portugal, Carla Simões: “Obviamente que a estratégia foi posta em causa, com danos colaterais, porque já deviam ter acordos e contratos feitos com outras entidades, o que acaba por ser frustrante.”

Hoje a planificação é difícil de concretizar, sendo substituída pelo improviso e pela navegação à vista. “É catastrófico quando uma equipa multinacional monta uma estratégia com meses de antecedência, como acontece com Madonna, que edita em simultâneo numa centena de países, e ela ir por água abaixo”, afirma Paulo Junqueiro, director-geral da Sony Music Portugal (e proximamente do Brasil). 

No caso de Björk, o seu novo álbum, Vulnicura, foi disponibilizado na Internet em Janeiro, dois meses antes do lançamento previsto para Março, para coincidir com a grande retrospectiva do MoMA. Em virtude do ocorrido, toda a estratégia comercial foi mudada. O disco foi colocado à venda digitalmente de imediato, tendo saído em CD há duas semanas.

A disponibilização ilegal de discos na Internet não constitui uma novidade, principalmente os que são aguardados com expectativa pelo grande público. O que é novo é o tempo de antecedência com que isso sucede — em vez de dias ou semanas, estamos a falar de meses —,colocando em causa qualquer estratégia comercial. Também no perfil dos agentes que operam essa disponibilização ilegal há novidades.

Tanto Madonna, como Björk — apesar de ter optado por não apresentar queixa junto das autoridades — parecem ter sido alvo de ataques informáticos. “A partir do momento em que os hackers entram na CIA, na Casa Branca ou na Sony Pictures, porque não hão-de fazer o mesmo quando se fala de grandes artistas ou de estúdios de gravação?”, questiona Paulo Junqueiro. “Não me espanta. Durante muitos anos, perante a passividade das autoridades, a capacidade dos hackers foi aumentando e agora é o que se vê.”  

Classicamente culpava-se os radialistas e jornalistas, que tinham acesso prévio aos discos importantes, de os colocarem na Internet. Também acusados eram os técnicos de gravação e responsáveis pela masterização dos discos que dispunham dos temas concluídos antes das editoras. E também houve histórias de artistas que enviaram faixas a amigos, tendo aquelas acabado na rede. Alguns escândalos ficaram famosos, como o filho de um executivo da multinacional Warner responsável pela disponibilização ilegal de inúmeros lançamentos na Internet.

As possibilidades são muitas e as motivações também, especulando-se que algumas dessas disponibilizações ilegais podem ser acções estratégicas deliberadas de artistas, editoras ou managers, para conseguirem mais atenção.
Esse é o argumento clássico dos consumidores. Do lado das editoras ouve-se que esse raciocínio é uma forma de quem o profere apaziguar a sua consciência. A verdade é que ninguém consegue perceber com rigor se a chegada antecipada à Internet de um disco é bom ou desvantajoso e que tipo de efeitos pode ter sobre as vendas. Cada caso é um caso.

“Depende muito dos artistas”, reflecte Carla Simões. “Em alguns casos isso significa publicidade, porque os media acabam por falar dessas ocorrências, mas na maior parte das vezes a fronteira entre o prejudicial e o benéfico não é perceptível. A verdade é que as pessoas cada vez menos têm paciência para a pirataria, com tantas alternativas que existem, do iTunes ao Spotify. Mas é verdade que os grandes lançamentos continuam a despertar muita atenção.”  

Controlar o processo de lançamento de um disco tornou-se difícil por causa das disponibilizações ilegais, havendo quem defenda perante esse cenário que o melhor é editar um disco mal ele esteja finalizado, mas também porque o mistério que existia à volta das gravações se dissipou. É árduo manter em segredo que se está a trabalhar em música nova. Mas há, claro, excepções.

David Bowie conseguiu lançar de surpresa, em 2013, o álbum The Next Day, graças à fidelidade dos seus músicos e técnicos (reforçada por contratos de confidencialidade) e uns meses depois Beyoncé logrou o mesmo com o seu quinto álbum.

“No caso do David Bowie só soube do lançamento do disco na noite anterior e não sabia sequer quem era o artista. Só me disseram que era um grande nome. Mas esse caso, como o da Beyoncé, é quase irreal”, recorda Paulo Junqueiro. “Por muita confidencialidade e contratos assinados, existe sempre alguém que fura esses bloqueios. Basta imaginar quantas pessoas estão envolvidas num processo desses, entre produtores, artistas, técnicos de estúdio, a gravação, a masterização, a distribuição, enfim, um mundo. É extremamente difícil guardar um segredo desses.”

Num cenário de tantas imponderabilidades como este, “só resta às editoras e aos artistas continuar a ensaiar e a experimentar novas soluções” conclui, por sua vez, Carla Simões. “Ao longo dos últimos anos não temos feito outra coisa, tentando responder aos desafios por difíceis que eles se apresentem. Talvez não haja mesmo alternativa.”

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