PJ Harvey como um colectivo que canta e toca a uma só voz

A cantora de guitarra em punho foi-se. No Coliseu tivemos alguém que integra um colectivo que encena com excelência o rock e o absurdo da guerra.

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Miguel Manso
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Todos os concertos são únicos. O de quinta-feira, em Lisboa, de PJ Harvey não foi excepção. Foi naturalmente diverso dos dois que lhe vimos nos últimos meses – nos festivais Primavera Sound de Barcelona e do Porto – e muito distinto dos que fomos vendo ao longo dos anos, embora nos últimos tempos se percebesse que se aproximava do que agora expõe.   

É ainda um concerto de rock no sentido clássico, com aquilo que foi seduzindo nela ao longo dos anos: a exposição sem simulacros à flor-da-pele, num misto de fúria, poder, voluptuosidade e vulnerabilidade. Mas é também outra coisa. É uma brilhante encenação colectiva onde a catarse é concretizada de forma enxuta, directa, precisa. São aqueles sons e palavras e nada mais. Por vezes mais parece que estamos a assistir a uma coreografia onde os dez intervenientes em palco têm como função produzir o mínimo de movimentos para soltar o máximo de emoção.

É um ritual. Preciso. Milimétrico. Quase militar. Não existem desvios de atenção e trocas de gracejos entre palco e plateia, apenas uma breve apresentação dos músicos e o lançar de um obrigado. Porque de encenar o absurdo da guerra se trata. É verdade. Não foi muito diferente do que vimos em Barcelona e no Porto, porque a sombra do último álbum tudo cobre. Mesmo quando são tocadas as outras canções é ainda como se nesse disco nos detivéssemos, porque tudo à volta – o som que forma um bloco entre rock, blues ou jazz, o tom sombrio, o furor contido, as palavras politizadas e a encenação desembocam no mesmo sentido.

Mas foi, claro, também diferente desses concertos porque, ali, numa sala como o Coliseu, é possível percepcionar de uma outra forma as subtilezas de um espectáculo que tem muitas. Em primeiro lugar é, como talvez nenhum outro ao longo do seu percurso, uma encenação iminentemente colectiva. Claro que é ainda ela que nos foca a atenção. Mas dilui-se, no meio de nove notáveis executantes (com destaque para John Parish e Mick Harvey, entre guitarras, baixo, bateria, percussão, metais e teclados) que mais parecem funcionar como um coro da tragédia grega, todos de negro, cantando e tocando a uma só voz, como uma verdadeira comunidade.

E depois existe também o design de palco – da autoria do artista multimédia Jeremy Herbert – que é, ao mesmo tempo, imponente, sóbrio e solene, como a própria música e atitude dos executantes. Tudo no mesmo fluxo. Haverá quem tenha saudades dela de guitarra em punho mais empenhada em soltar doses de electricidade rock. Nós não. Disso já tivemos. E existe quem o faça também muito bem por aí. Aquilo que ela tem para propor hoje é outra coisa, mais densa e exigente.

Por vezes empunha teatralmente o saxofone, símbolo deste último álbum, quase como se fosse uma arma, de negro, magra, felina, mas na maior parte do tempo está apenas disponível para as palavras, principalmente as do último álbum em canções como Chain of keys, The Ministry of Defence, The Community of hope, The wheel, The ministry of social affairs, A line in the sand ou River anacostia. Esta última encerrou o espectáculo antes do encore e constituiu talvez a tradução mais consequente do que se passou.

Começou com um murmúrio vocal em coro, entrando depois uma percussão marcial e a voz de Harvey alastrando pelo espaço, enquanto os restantes elementos sonoros vão imergindo, com os teclados planando, até que de novo o coro masculino surge dissolvendo-se na voz feminina para todos, em conjunto, de uma forma quase litúrgica, à boca do palco, num registo gospel, cantarem Wade in the water, God’s gonna trouble the water, contaminando dessa forma também a assistência. Arrepiante.

Também existiu espaço para revisitações a outros álbuns em canções como as excelentes The words that maketh murder, The glorious land e Written in the forehead (todas de Let England Shake, o álbum de 2011 que, agora percebe-se, pronunciava já o que viria a seguir). Ou, indo lá mais atrás, para o desvario rock de 50ft queenie, para o blues descarnado de To bring you my love ou para a sensualidade poderosa de Down by the water, talvez a canção que é capaz de tocar o público de forma mais transversal.

Quando os músicos saíram do palco, pela primeira vez, quase como tinham chegado, como se fossem espectros, o Coliseu fez sentir que queria mais. Foram minutos de espera para que os intervenientes regressassem para mais duas canções. E aí, mesmo aqueles que ainda vivem das memórias dela de guitarra em punho, já haviam sido conquistados para esta PJ Harvey  de sentido mais colectivo, onde todos parecem cantar e tocar a uma só voz.

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