Perpetuar o incêndio

Persianas, que agora chega às livrarias, é o culminar de um percurso invulgar na densamente povoada poesia portuguesa. A de Miguel-Manso tem esta missão: furar com as palavras até ao que não se vê.

Foto
"A magia é mais, enfim, imediata e menos ocultista do que parece. De qualquer maneira, é uma coisa que se começa a entender, e com a qual se começa a lidar, na infância" MIGUEL MANSO

Miguel-Manso publicou o seu primeiro livro em 2008: Contra a Manhã Burra (Edição do Autor), e no mesmo ano, Quando Escreve Descalça-se (Trama).

Estes livros, juntamente com três outros (Santo Subito, Edição do Autor, 2010; Ensinar o Caminho ao Diabo; Um Lugar a Menos, Edição do Autor, 2012), formam a série Carimbos de Gent. O motivo tornou-se quase um aspecto da mitologia poética coeva. Os carimbos comprados pelo poeta na cidade belga forneceram a imagem da capa daqueles breves volumes, que garantiram a Miguel-Manso uma posição sobremaneira peculiar numa paisagem densamente povoada, e com incidências francamente aliciantes, como é a da poesia portuguesa de agora. Seguiram-se Aqui Podia Viver Gente (Primeiro Passo, 2012), Tojo: Poemas Escolhidos (Relógio D’Água, 2013) e Supremo 16/70 (Artefacto, 2013).

Agora, estreia-se na colecção de poesia da Tinta-da-China, dirigida por Pedro Mexia, com o novo Persianas. Um percurso que não é arriscado considerar invulgar, que escolheu, primeiramente, uma via de certo risco, não legitimada por qualquer chancela, mas que atingiu um patamar que, sem qualquer exagero, se pode situar em lugar de realce. O poeta, que nasceu em Almeirim, viveu em Lisboa quase dez anos, mas reside, actualmente, na aldeia de Vale do Pereiro, freguesia de Várzea do Cavaleiros, no concelho da Sertã (Castelo Branco). Como já escrevera, em Carta do Vale do Pereiro (Quando Escreve Descalça-se, terceira edição, Trama, 2011): “em casa um dos quartos/ arde uma paisagem oca/ um século uma cadeira partida”.

Acabaram-se os carimbos?
Não, pararam. Pararam por vários motivos. Por alguma preguiça de tratar das coisas, de compor o livro e, depois, pior, de distribuí-lo, que é uma coisa um bocado chata. E cada vez mais difícil. E acomodei-me um bocadinho ao prazer de ser editado. Que eu desconhecia. Mas não, creio que poderei voltar quando quiser. Tenho essa liberdade.

Não sei se sabe, mas Nuno Moura referiu-se a eles, dizendo que “a cidade de Gent proibiu a venda de carimbos” (Canto Nono, Douda Correria, 2013).
Não, não sabia. Eu conheço mais o primeiro canto, que foi uma encomenda minha e do meu irmão para o filme da jangada [Bibliografia, realizado em colaboração com João Manso]. Contava ir comprar mais uns carimbos a Gent, mas se está proibido já não posso ir, não é? Ele [Nuno Moura] é um querido provocador.

Qual a influência que o lugar em que vive tem no tipo de poemas que lá escreveu?
Em geral, o sítio onde estou participa das coisas que escrevo. Mas participam também os sítios aonde nunca fui, mas que de alguma forma é preciso visitar, em texto. Tento retirar, de uns e de outros, aquilo que não está lá, a parte que não se mostra. É isso o que mais me interessa. Neste sentido, escrever sobre sítios, experimentados ou não, implicará o uso do mesmo grau de veracidade. Nunca menti sobre Banguecoque, onde nunca fui visto, ou sobre a Índia antes de lá ter estado por duas vezes. Creio até que os poemas sobre a Índia ainda não vivida são mais “correctos” do que os que escrevi depois de lá ter estado. A maior parte dos poemas sobre a aldeia apareceram antes de ter ido para lá. Tanto que já figuravam em colectâneas anteriores. Este livro foi escrito na passagem de um lugar para outro, e só aparentemente é biográfico. Só me interessam as paisagens interiores, e se escrevo sobre o que existe é para furar com as palavras até ao que não se vê.

Que relação estabelece entre este livro e os que antes publicou?
Tenho sempre a intenção de me arriscar fora do que sei que resultou ou não resultou. Em geral, não tenho medo de falhar, embora tenha, sim, muito medo de falhar. Acontece que tenho falhado de forma corajosa ao longo destes nove títulos. Tenho a impressão de que é isso que os leitores procuram nos meus livros: assistir ao mesmo naufrágio, em diferentes embarcações. Desde a jangada (a mais comum), ao barco de recreio. Desta vez, quis o embarque num navio de cruzeiro, repleto de tudo o que já reuni: os recursos, os temas, as formas longas e as breves, as figuras. Quando tombar desta vez, vai ser um espectáculo desolador ver a tralha toda a boiar.

Em Persianas, fala, a certa altura, de uma “aula de magia”. Refere-se à infância?
A magia é mais, enfim, imediata e menos ocultista do que parece. De qualquer maneira, é uma coisa que se começa a entender, e com a qual se começa a lidar, na infância. Na primeira infância, mesmo. E a aprendizagem da magia também se faz no sono, dormindo. É uma coisa que entra nesse território do sonho.

Foto
MIGUEL MANSO

Há pouco dizia, em comentário marginal, que o poema é que manda; as pessoas tentam controlar, mas é o poema que decide. Um pouco como aquele lugar-comum dos ficcionistas que dizem que a história se conta a si mesma. Isso tem alguma coisa a ver com estes versos, do novo livro: “nenhum poema me pergunta/ se está certo”?
Sim, terá a ver com isso. Talvez o livro, na primeira parte, recaia muito sobre a ideia de composição do poema. Que é uma coisa que eu já tenho vindo a fazer, mas acho que esgotei neste livro. Aliás, este livro é tão extenso, também, porque eu creio ter posto nele tudo o que já sei. E agora estou numa grande crise, que o número nove, também no tarô, nos ensina, que é o Eremita, que olha para trás, para o caminho já feito. É um velho gasto do caminho percorrido, com uma candeia que aponta não para a frente, para o desconhecido, mas para o caminho já realizado. E o número nove simboliza, entre outras coisas, os nove meses de gestação e a grande crise de renascer. Acho que neste livro pus tudo o que sabia: auto-ironia, metapoema, a biografia. Todos os recursos que fui descobrindo. O poema com título, o poema sem título. O poema curto, aforístico. O poema longo. Mas, especialmente nessa parte, o livro seguiu a construção quase como de um livro de ficção, do princípio ao fim. Não é completamente assim, mas eu fiz a última parte no final. E com essa estou mais confortável. Estes poemas segundo o poema. Mas com quanto mais certezas vou para um poema, mais elas saem goradas.

Falou da crise que o nove pode significar. E disse que viveria uma crise. Que crise é essa? E que repercussões ela pode vir a ter no que escreverá/publicará a seguir?
O nove no tarô é o Eremita, um velho gasto do caminho percorrido e que aponta a sua candeia não para a frente, para o desconhecido, mas para o caminho já realizado. É o fim do ciclo da primeira sequência decimal, antes do dez, que é A Roda da Fortuna, abrindo passagem à sequência seguinte. Acontece também que cumpri sete anos desde que publiquei o primeiro livro e é sabido que, de sete em sete anos, aquilo que foi aberto se encerra. A crise é um desarranjo benquisto e o que virá estará certo, estará mais certo ainda.

Que papel terá Ruy Belo na sua percepção da infância?
Não tem muito. Não é o que mais guardo da leitura que fiz. Foi de rompante. Depois não terei voltado muitas vezes ao Ruy Belo. Terá também alguma coisa, mas não sei se devo muito ao Ruy Belo nesse aspecto.

Mas deve-lhe alguma coisa?
As barbas.

O poema longo não?
Também. Eu lembro-me de que os primeiros poemas mais longos que escrevi foram a tentar copiar aquela maneira de escrever. Mas não a partição dos versos, não as minúsculas. Tenho minúsculas, mas quando vem um nome próprio uso maiúsculas. Também na partição do verso. O verso é mais curto, também.

Noutro comentário marginal, referiu que era “difícil estar no meio do incêndio”, creio ter percebido que, também, em relação à infância.
Não me lembro exactamente do contexto em que o disse, mas entendo bem essa ideia da dor da travessia. Mas a minha tentativa agora é perpetuar o incêndio. A minha mãe teve uma vez um sonho, que foi o mais dramático de todos, e de que ela ainda se lembra e fala. Sonhou que era um helicóptero. Mas o helicóptero estava a arder. Estava em pleno voo, só que em chamas. E tinha um mecanismo dentro de si para apagar o próprio fogo. O fogo era o horror do sonho, aquilo que era preciso apagar. Pesquisas minhas mais recentes fizeram-me voltar a essa conversa com a minha mãe. Ela lembrava-se bem do sonho. E a minha proposta foi a de que o fogo era a coisa boa. Havia que deixar o fogo. Entrando também um pouco por estas correntes que chegam da Índia, e destes gurus que foram beber à Índia e voltaram. Não têm de ser indianos. Eles falam muitas vezes do fogo, em que é preciso arder até ficar apenas o essencial. Então, o fogo, se o encararmos, é assim. Os nossos medos têm de ser abraçados. Eles não estão fora de nós, estão dentro de nós. E essa proposta já era intuída por mim há muito tempo, quando lhes disse [aos pais] que queria escrever poesia e ser poeta. A vida era para arder. É uma tentativa de perpetuar um fogo que havia, que era a infância. Quando ainda não estamos muito poluídos.

A escola não ensina nada de bom (cf. Persianas: “uma escola onde/ já se sabe/ nada de bom se ensinará”)?
A escola é uma coisa que faz parte do todo, e aprende-se em todas as coisas. Mesmo quando se desaprende e quando se sofre. Mas a escola, como está, foi motivo de grandes angústias. De violências. Principalmente, na primeira escola. E depois, ao longo da vida, foi motivo de frustração, de incómodo. A escola, como está, não funciona. Tinha de levar uma grande volta.

Mas então podia funcionar? Podia ser outra coisa?
A escola podia funcionar menos mal. Há quem estude e quem pense. Eu não tenho ideias para isso. Eu só me sinto, senti-me, a certa altura, vitimizado pela escola. Violência. Enfim. Violência física. Bater a uma criança na escola é um crime. E a escola fomenta a competição, a competição entre colegas. Eu sempre vivi essa aberração.

Foto
MIGUEL MANSO

Há aqui alguns poemas que podem ser vistos como desenvolvimentos do tema do tempo. Qual é o tempo do poema? O poema tem o seu próprio tempo?
É talvez um jogo de espelhos. Tem o tempo do leitor e tem o do autor. E cada um acede ao poema por encostas diferentes do mesmo monte. Só se tocam aí. Se calhar, o poema é o símbolo de alguma coisa que se queria atemporal. Eu sou muito interessado por essa ideia do instante puro e pela eternidade, que são a mesma coisa. E se calhar o poema queria ser esse ponto que não é inteligível. Só é possível apontar para esse espaço, esse espaço-tempo. Não é possível falar de espaço sem tempo, aparentemente.

A indicação “(marca Supremo calibre 16/ câmara 70)” remete para o seu livro anterior, Supremo 16/70.
Eu tive alguma dificuldade. Não fazia sentido dar logo essa chave. Mas depois senti necessidade de que se entendesse [os números referem-se ao calibre de munições e à câmara da arma que o avô utilizou quando se suicidou]. Há ligações entre esses dois livros, como há ligações com livros ainda mais para trás.

Num poema em que diz “todo o planeta é um carro alegórico/ diz o sétimo Arcano do Tarô”, está, realmente, a falar de tarô?
[Tira do bolso interior do casaco um baralho de tarô, ou parte dele, como explicará.] É o sete. O carro. Este aqui.

O sete é um carro alegórico?
É uma interpretação possível.

Quantas cartas são?
Aqui são 22. São os arcanos maiores. Depois há as outras 56. São os arcanos menores. Setenta e oito ao todo. Isto é uma interpretação possível. É um teatrinho, é um carro. Tem as rodas de lado, portanto não avança a não ser no próprio planeta, na rotação do planeta.

Mas isso é uma interpretação sua, ou resulta de uma subjectividade lida em algum lado?
É uma mistura das duas.

Mas também pode intervir, como intérprete?
Devo. Se não fosse assim, não seria uma coisa viva. Era uma coisa copiada. E tarô não é assim. Deve-se intervir.

Tendo em conta isso que diz, mas também versos como “e cada um destes versos foi/ talvez lançado de lá por um persistente e solitário/ archeiro do debelado exército real”, consegue descrever o tipo de espiritualidade destes poemas? Há um tipo de espiritualidade para eles?
Só há uma espiritualidade. Há várias religiões, mas só uma espiritualidade. Só há um espírito, só há um deus. Há inúmeras seitas e religiões — menos religiões do que seitas — que são uma interpretação de uma coisa que terá de ser igual para todos. Portanto, não há espiritualidades.

Este verso: “divaga do nigredo ao rubedo e torna”.
Isto é uma coisa alquímica, das fases da transmutação da matéria, do esterco ao ouro. Nigredo, albedo, rubedo. São fases. Só que o que eu faço aqui é voltar outra vez ao esterco, à lama.

Quando fala da “doutrina arcana do poema”, quer dizer que o poema é sempre um arcano? A única via para o poema é o mistério?
Eu acho que há muitos acessos, muitos patamares diferentes. O poema não é só uma coisa. Pode ser menos, pode ser mais do que isso. Posso querer menos ou mais, ou ele pode dar-me menos e mais. E ser legítimo e aproveitável. Comunicável. Não posso dizer que seja só isso, que tenha de ser assim sempre. Mas é uma coisa que agora é mais presente do que nos outros livros, em que o estava menos.

“não entendo a paisagem daquele/ que olha um trecho do mundo como se ele/ fora diversamente vasto”. Quer dizer que o mundo é um só?
Visto do nosso patamar, não é. É muita coisa. Mas se fizéssemos aquele zoom out até muito longe, para lá de muito longe, havíamos de ter outra ideia. Aqui, parece-nos bastante diverso, ao ponto de pensarmos que somos diferentes, quando somos a mesma coisa. Podemos pensar que, naquilo que não é divisão, nesse nosso inconsciente colectivo, abre-se uma porta para qualquer coisa que é comum. Aquelas pessoas ali não estão assim tão distantes. Só na atenção e na parte mental, na parte racional. Mas há outras coisas a acontecer. Nesse acaso, que é uma lei que não sabemos, que apenas desconhecemos.

Que noção do nosso tempo está na origem destes versos: “menor persistência terá este poema martelado/ agora mesmo na idade do tombo”?
É aquela coisa da extinção. Estamos agora no fio da navalha, constantemente a desviar o olhar de uma coisa que é bastante presente, e que é a extinção desta porcaria toda. E como este é um livro com pretensões cósmicas, assim à Terrence Malick no cinema, de grande diálogo em cima das espirais, das nebulosas e, depois, das coisas pequeninas da vida, do mais pequenino ao maior. A idade do tombo pega nas yugas do hinduísmo [vastíssimas unidades de tempo no sistema hindu], nas eras. Estamos na era da decadência.

Essa questão das eras, medidas em milhares, em milhões de anos, lembra o poema A Falha do Tejo.
Eu queria escrever um livro muito extenso, e ao mesmo tempo queria que se atravessasse uma coisa demorada, mas que não o fosse. Esse poema guardado para o fim é um dos que primeiro existiram, e volta a brincar com essa ideia: em termos geológicos, milhões de anos não é nada, é um instante. Na verdade, há essa erosão em cima das montanhas, em cima dos tempos, e nós não estamos no final do processo, estamos a meio de um processo que continuará sem nós e que, porventura, recomeçará. Este poema final retoma essa ideia de tempo e de brevidade, de demora. Ponho os poetas ao barulho [Jaime Rocha e Carlos Alberto Machado] comigo e vamos pelo intestino abaixo [há um poema em que M-M fala de “intestino/ do cano”, a propósito da água de um lavatório].

O que é o gorila [cf. poema O Gorila Invisível]?
O gorila pode ser muita coisa. Não é uma coisa só. O gorila invisível é um exercício que prova a nossa cegueira, a nossa atenção dirigida e a desatenção para outra coisa que está à nossa frente. É usado como exemplo na psicologia. Há vídeos que demonstram esta coisa muito simples. Há duas equipas de três pessoas, cada uma com um equipamento diferente, ou preto, ou branco. Pedem-nos que contemos quantas vezes os jogadores passam a bola entre si. Eles estão misturados, a passar a bola entre si, entre membros da mesma equipa. Aquilo é confuso. Tem de se estar atento. Pelo meio, passa um gajo vestido de gorila, bate no peito, ruge e sai. E nós não o vemos. Estamos tão obcecados a contar o número de vezes, porque pensamos que o exercício é esse. Porque aquilo é difícil. Por fim, dizemos: “Dezasseis vezes.” “Mas viu o gorila?” E este exercício de atenção e de desatenção é o da leitura. Porque este é um livro sobre a leitura e sobre o esquecimento. Interessou-me a cegueira, que é uma coisa que me acompanha de outros livros: Um Lugar a Menos, por exemplo. Depois há outro vídeo. Já se vai para ele a pensar “Bom, já sei que tenho de ver o gorila.” Mas no fim perguntam: “Viu que a cortina atrás muda de cor e que um elemento de uma das equipas saiu?”

Sugerir correcção
Comentar