Penicos de Prata. Com a boca cheia de palavrões

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Poesia satírica e erótica traduzida em canções que soam vagamente a música tradicional portuguesa de câmara? As televisões e os programadores têm medo. Mas estas palavras são velhas como o mundo

Aqui há uns dias os Penicos de Prata foram à RTP apresentar o seu primeiro e homónimo disco. Como resultado, só puderam tocar uma canção. Motivo? A linguagem. Na capa do livro/CD está um aviso bem claro – “Contém linguagem do c******” – pelo que ninguém entra aqui às cegas.

Não foi, de resto, a primeira vez que isto sucedeu com o quarteto. Na rede de teatros nacionais os Penicos têm dificuldade em vender o seu espectáculo. “Os decisores gostam”, começa por dizer Catarina Santana, que se ocupa da voz e do ukelele, “mas depois têm medo de perder o seu público dos auditórios. Dizem: ‘Não vou apresentar isto ao meu vereador’. Também foi essa provocação que nos agradou”. 

André Louro, guitarrista e mentor do projecto, tem uma piada sobre o assunto: “Tenho uma amiga brasileira que me diz que isto no Brasil é habitual e bem visto, o palavrão bem dito”. Mas no Portugal do século XXI ainda temos problemas com um “caralho” e uma “greta”.

O “caralho” e a “greta” não são palavras gratuitas nas canções dos Penicos de Prata, fazem parte de um conceito muito respeitável: musicar poesia satírica e erótica portuguesa. E não são uns poetas quaisquer: entre os autores musicados estão António Botto, Pessoa, Liberto Cruz ou Adília Lopes, entre outros menos conhecidos, mas recolhidos por Natália Correia, na sua Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica.

“Nós queremos colocar nas palavras uma seriedade tal, de modo que um “caralho” tenha o mesmo peso de um ‘mas’”, explica André. “Isto tem uma linguagem muito cuidada, não são uns tipos bêbedos na tasca”. 

O cuidado estende-se, claro, à música – ao fim e ao cabo são canções que estão aqui em causa – escritas para guitarra, ukelele, contrabaixo e violoncelo. Meia banda é composta por actores, a outra por músicos com educação clássica. A música vai de uma espécie de proto-Portugalidade meia medieval à música brasileira.

O início dos Penicos de Prata remonta a 2002 ou 2003, quando o Teatro Extremo, em Almada, tinha um Cabaret da Coxa – antes do programa de televisão – onde se apresentavam sketches. “Pediram-me para musicar dois ou três poemas eróticos da Natália Correia, e isso marcou o que viriam a ser os Penicos de Prata desde o início”, conta André.

Ao início a banda era composta por André e João Lima, que entretanto saiu. André tem uma longa carreira nas artes performativas: “Estive cinco anos no Teatro de Almada, ano e meio na Barraca, trabalhei com a Ana Nave, fiz novelas, estive cinco anos com a Olga Roriz”. Entretanto foi para Bruxelas com Catarina Santana “estudar teatro mudo, de gesto, mimo”. Lá formaram uma banda, que fazia acima de tudo versões do Zeca. Os organizadores dos concertos anunciavam-nos como sendo de fado, porque, ei, eles são portugueses.

Catarina também tem sido, até agora, primordialmente actriz, isto depois de abandonar Engenharia do Ambiente: esteve oito anos na Barraca, tem feito encenação para a Ópera do Castelo e dado aulas de teatro em movimento. Os dois outros membros da banda, Eduardo Jordão e João Paes, são músicos em exclusivo.

Paes surgiu aquando do regresso do casal a Portugal. “Quando voltámos de Bruxelas, em 2006”, conta Catarina, “voltámos a fazer uma espécie de Cabaret da Coxa, mas na altura chamava-se Noites Saturnálias; mantivemos a temática do erotismo”. “Nessa altura”, intervém Louro, “entrou o João Paes, que tinha 16 anos quando se juntou a nós. Estudava violoncelo clássicos desde os quatro anos”. 

As coisas não ficaram por aqui – a história do parto do álbum de estreia dos Penicos de Prata foi complicada. Quando tinham “oito ou nove canções, quase o suficiente para um concerto, Lima saiu, porque tinha os O’queStrada”, recorda Catarina. “Entretanto o João Paes saiu para estudar música em Bruxelas. E entrou o Jordão. E depois o Paes voltou”, completa Louro. Até há pouco os Penicos de Prata foram sendo “algo de muito pontual”. 

Estabelecido o quarteto houve que “fazer o desmame da Natália Correia”, nas palavras de André Louro, e descobrir outros poetas. “Descobrimos a Adília Lopes. E houve uma altura em que nos contactavam via Facebook e nos mandavam poemas.” 

O teatro está nas palavras

A partir daqui houve que tomar decisões: sendo dois dos membros da banda actores, os espectáculos deviam ser encenados ou não? Segundo Catarina, “nunca houve uma vontade de encenação. Primeiro queríamos dedicar-nos à qualidade musical”.

O lado musical encontrou um sistema, um método: “O André vem sempre com um esboço”, explica Catarina”. “E depois temos liberdade a partir daí. Eu defendo a palavra, o Paes preocupa-se com questões técnicas, o Jordão debruça-se mais sobre o ritmo. Cada um tem preocupações diferentes.” O lado teatral, diz, surge na forma de dizer as palavras. De certa forma é como se eles fossem a verdadeira Deolinda dos bairros populares: de boca cheia de palavrões e conversa de cama, se bem que refinada. 

Para a primeira edição os Penicos de Prata decidiram-se não por um DVD, como chegou a estar planeado, tendo essa hipótese caído devido à escassa encenação dos concertos, mas um livro/CD com exímias ilustrações de gente como António Jorge Gonçalves, Bárbara Assis Pacheco, António Viana, entre outros. “Hoje em dia não faz sentido fazer CDs”, diz André. “Eu faço canções para novelas e nunca as editei. Mas aqui quisemos um objecto artístico o mais completo possível. E as ilustrações dão outra visão sobre as palavras, que são o fundamental.” 

“Isto não é muito diferente de fazer teatro”, explica. “Basta substituir o corpo pela guitarra.” Embora em certas televisões nacionais o corpo ainda assuste um bocado, pelo menos quando mencionado em vernáculo. 

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