Peça um autor vampiro e uma todo-poderosa Mark Zuckerberg

Partindo de um texto de Jacinto Lucas Pires, Ricardo Pais estreia este sábado no Centro Cultural de Belém a peça Meio Corpo, um conjunto de pequenas histórias assistidas por um autor em luta contra uma mulher-tecnologia.

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Sofia Arriscado
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O Autor folheia um jornal e vai anunciando as notícias em que os seus olhos demoram não mais do que um segundo. Uma: “A crise da dívida traz congresso mundial da contabilidade ao nosso país”. Outra: “Homem mata mulher e filhos e suicida-se”.

Outra ainda: “Leandro Venial diz-se cansado de representar galãs no horário nobre”. E assim, de uma assentada, o Autor (com maiúscula, porque é nome de personagem) diz-nos mais ou menos ao que vem neste Meio Corpo – um texto de Jacinto Lucas Pires segundo uma versão livre de Ricardo Pais – que sábado se estreia no Centro Cultural de Belém, onde fica até 11 Março.

E diz mais ou menos ao que vem porque Meio Corpo compõe-se de uma sucessão de pequenas histórias que “derrapam e batem umas nas outras”, diz o encenador Ricardo Pais, e em que as personagens são atiradas para o palco “como um pequeno coral”. São estas histórias que mais interessam explorar a Ricardo Pais: o relato de um pai que galga as escadas do prédio com o pressentimento de que algo de muito errado acaba de acontecer e descobre, lá em baixo, o filho mergulhado no asfalto; ou um homem apaixonado pela dona de um cão chamado Croquete e que deixa no ar um cheiro a amêndoa doce (a dona, não o cão).

Interessam mais estas histórias a Ricardo Pais do que o atarefado Autor que as escreve à medida que as vai ouvindo – como se, sentado à secretária, convidasse o seu grupo de personagens a partilhar as suas vidas para as poder passar para o papel. “Queridos amigos”, diz-lhes, “é um prazer ver como começam a dar-se uns com os outros, a descobrirem formas de interagirem, formas plenas de coerência dramática e, no entanto, também surpreendentes.” E também o Autor se surpreende, na verdade, com palavras que lhe saltam para o discurso, acções que se exibem à sua frente sem que as reconheça como produto do seu labor dramatúrgico. Afinal, terá o Autor que vampiriza todos os relatos que vêm ao seu encontro, perdido o controlo?

É bem possível que sim. Porque o controlo é-lhe sonegado por uma Senhora, omnisciente, a quem Ricardo Pais chama “uma todo-poderosa Mark Zuckerberg ou Steve Jobs portuguesa”. A Senhora sabe tudo. A senhora é talvez um motor de busca que se passeia entre as personagens, é talvez uma tecnologia em sentido mais lato que exige espaço e atenção. E seduz, pois claro que seduz, levando o erotismo para cima do palco sem que o dirija especificamente a alguém. “O erotismo e a sensualidade que a Emília [Silvestre, actriz] introduz na personagem é uma coisa própria, egocêntrica, e que não estava presumida no texto”, explica Ricardo País. O que estava presumido no texto de Jacinto Lucas Pires (intitulado Igual ao Mundo na origem, transformado em Meio Corpo nesta versão) era uma voz robótica, mecânica, fria. E também esta relação nuclear de conflito entre Senhora e Autor.

“Numa literatura, como a do Jacinto, que se joga muito entre o amor e a morte, e muito pudicamente na anatomia”, prossegue o encenador, “a sensualidade da Emília é um factor de agregação e de sustentação.” Mas é também a explicitação dessa embriaguez colectiva que vivemos com a tecnologia: seduz para se tornar o centro da acção e sempre que a atenção lhe escapa resolve o problema com um sonoro grito, roubando repetidamente o destino daquele mundo das mãos do Autor.

Encontro a três

Meio Corpo chama-se então, pelo punho de Jacinto Lucas Pires, Igual ao Mundo. E partiu de uma série de coincidências em torno dos planos do colectivo Ensemble de Actores. Foram eles que primeiro pensaram em convidar o autor (agora em minúscula, porque designa a faina de Lucas Pires) a escrever uma nova peça para o elenco algures durante o quadriénio 2013/2016. Mas quando lançaram igualmente o isco para chamar Ricardo Pais de novo para o seu percurso, após um Hamlet (2002) muito bem-sucedido, o próprio encenador manifestou também a vontade de voltar a um texto de Jacinto Lucas Pires, tendo assim antecipado o encontro entre os três.

Com as mãos na massa, Ricardo Pais tratou depois de criar a sua própria versão do texto, encurtando-o, alterando a cronologia, dispondo as peças segundo uma lógica capaz de produzir a narrativa que pretendia. “Foi uma adaptação muito complicada”, confessa, só possível com um intenso envolvimento dos actores, também eles experimentando com as personagens, peneirando na escrita as situações com que se sentiam mais confortáveis. Dada a relação de absoluta confiança entre encenador e autor, Ricardo Pais diz-nos que Jacinto Lucas Pires “não leu sequer” esta versão. “Ele achou que eu poderia fazer uma coisa fantástica à minha vontade”. A bênção estava dada antes ainda da primeira fala.

Meio Corpo, “um espectáculo com um jogo completamente pérfido porque está sistematicamente a passar rasteiras a si próprio e a introduzir pequenas aberrações”, não resiste também às recorrentes sugestões distópicas de Ricardo Pais e a incontáveis alçapões de misteriosa decifração. Como a história de um homem que se submete a uma operação de extracção de uma distracção na nuca. Desde então, escreve Jacinto Lucas Pires, anda assim: meio corpo à procura do outro meio. Em Meio Corpo, de facto, há sempre qualquer coisa que escapa. Cabe ao espectador implicar-se na sua investigação.

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