Paris, Maio de 2016

Relance do levantamento francês, entre République e um mosteiro medieval

1. O Bataclan está em obras. Seis meses depois dos atentados, andaimes cobrem a fachada na travessa Saint-Pierre Amelot, por onde muita gente correu, ou se arrastou ferida. Uma parisiense de cabelo escorrido, olhos em bico, carrega o seu contrabaixo até uma porta, tira a chave do bolso. Mora ali mesmo, por acaso naquela noite não estava em Paris, pergunta de onde venho, elogia a música portuguesa do século XVIII, diz até à vista. Dobrando a esquina para o Boulevard Voltaire, as obras estendem-se ao Bataclan Café, flores frescas no chão, murchas nos tapumes, os parisienses passam, baguette na mão ou empurrando carrinhos de bebé pelo fim da tarde, fins de Maio de 2016. E basta subir um pouco mais até à Place de la République para ver todos os sinais do tempo: as flores, as velas, as mensagens pós-atentados; e o levantamento em curso que a praça simboliza, com um acampamento geral, desde 31 de Março. Ocupar o espaço público para retomar o lugar de todos na república, dizem.

2. Há tendas de campismo, bancas com gente a cortar legumes, um pequeno dossel azul que faz as vezes de palco nas assembleias gerais. Um rapaz ao microfone resume a situação do dia nas refinarias, um dos eixos da luta contra o novo Código do Trabalho que o primeiro-ministro Manuel Valls quer impôr. Paralisaram por toda a França, em bloqueios organizados pelos sindicatos da CGT, incluindo centrais nucleares. Valls diz que o país entrou nas reservas de combustível, declara os bloqueios irresponsáveis, admite alterações mas não deixa cair a lei. O protesto gerou todo um Maio de 2016, marchas, manifestações, greves: Brest, Rennes, Marselha, Calais, Bordéus, Caen, Vallenciennes, Le Havre, Paris.

3. Sediado na République, o movimento Nuit Debout é parte desse Maio embora conte os dias a partir de 31 de Março: 32, 33, 34 (esta crónica sairá a 90 de Março). De dia, no limite, à noite, levantados / Que ninguém entre aqui se não estiver revoltado / Não perder mais a vida a ganhá-la / Voltarei e serei milhões / Não voltaremos a casa / É uma grande Primavera que se ergue. Estão nas redes sociais, têm site, TV Debout, Radio Debout, Stream Debout. E no chão da praça, as lajes estão pintadas a branco com datas ao longo de décadas, por baixo de cada uma há um carimbo a dizer Morto pela polícia ou Mutilado pela polícia. Dia 18, os sindicatos da polícia organizaram uma contra-marcha, acusando os manifestantes de ódio à polícia, um carro policial foi incendiado. Depois, na greve geral de 26, embates entre polícia e manifestantes em várias cidades.

4. No centro de tudo isto, a estátua da República continua a erguer o seu ramo de oliveira, com as três alegorias da Revolução Francesa por baixo, Liberdade, Igualdade, Fraternidade, grafitadas de todo o tipo e cor, e muitas dezenas de pessoas empoleiradas, sentadas ou deitadas em volta, rastafaris com tambores e sopros, mas também viajantes, repórteres de microfone, pares de meia-idade, adolescentes de headphones e calças rasgadas nos joelhos. Comem, tocam, dormem, fumam, enquanto ao fundo, diante do palco-dossel prossegue o debate do dia, plateia sentada no chão.

5. Como isto é Paris, ao fim de algumas semanas de levantamento trinta sociólogos resolveram juntar-se para averiguar os clichês que diziam que Nuit Debout era um bando de punks com cães, ou de jovens parisienses bobos (burguês-boémio). Trataram de fazer uma primeira etnografia da coisa, seis noites, das 17h às 22h30. Concluíram que os manifestantes não são assim tão jovens, metade têm mais de 33 anos, e que não vêm dos bairros mais chiques, mas sobretudo do nordeste de Paris, e da periferia. Dois terços são homens, talvez por ser uma altura do dia mais difícil para as mulheres, dizem, os organizadores prometeram reflectir sobre isso. E se 60% têm o ensino superior, 20 % estão desempregados. Os operários não são uma grande fatia, mas também não são uma ausência: 16%. Entre as referências misturam-se Aragon, Brassens, Bob Marley, Léo Ferré, Ken Loach, Jean-Luc Godard, Naomi Klein, Marx, Guy Debord, Jack London ou Trotski.

6. Ao mesmo tempo, assim no relance de quem chega, tudo em volta parece seguir o seu curso como se nada fosse, desde os turistas em Notre Dame às peças de Ionesco que desde 1957 se representam no mesmo teatro, agora com cada vez mais gente a passar de bicicleta ou de trotinete, milhares de adultos em trotinete não dependentes de combustível. Ao fim da tarde as esplanadas longe dos turistas enchem-se no mesmo bruá de sempre, copos, tapas. Não vi patrulhas de metralhadora, o metro parece igual, salvo os caixotes de lixo que tendem a ser todos de plástico translúcido. E nunca tinha visto carneiros a pastar no 7éme, bairro de ministérios, embaixadas, Assembleia Nacional. Uma pastagem eco-mouton explicava o cartaz na cerca, com indicações claras para ninguém alimentar os animais, com vista para a cúpula dourada do Hôtel des Invalides.

7. Menos vivos estavam aquele urso, aquele bisonte, aquele dromedário, todas as borboletas azuis que me fizeram parar numa montra, alguns bairros adiante. Era uma loja de animais empalhados e etc, entomologia, taxidermia, naturalizados, dizia o anfitrião, um cavalheiro de bigodes que frequenta Sagres e conhece todas as ilhas dos Açores menos uma. Falámos das borboletas da América do Sul e da Indonésia, de um rinoceronte do século XVI e de um elefante do século XX, tudo isso enquanto os tambores da revolta prosseguiam por França. E talvez por tudo isso, ele perguntou-me se eu conhecia o Collège des Bernardins ali ao virar da esquina. Valia a pena entrar, perguntar pelas sacristia, sugeriu. Além disso, seria de graça.

8. Assim foi, ao virar da esquina havia um mosteiro cisterciense de 1245, que depois da revolução francesa chegou a ser prisão e quartel dos bombeiros, até a igreja o recuperar, em 2001. Agora é uma fundação dedicada a debater “as esperanças e as questões da nossa sociedade”. Tem um curador que convida artistas a intervir na sacristia, percebi depois ao avançar até lá. Um cartaz com um título, Solitaire, e um nome, Stéphane Thidet. Quem chega põe simplesmente a mão na maçaneta para abrir a porta.

9. O ruído fica para trás quando a porta fecha. Degraus, um estrado, água. Um chão de água, que na semi-obscuridade parece negra. Pedra branca, chão negro, duas colunas altíssimas, cada uma com uma haste segurando um tronco de árvore, um na horizontal, o outro na vertical, ambos claros, muito sinuosos, com ramos saindo em várias direcções. Rodam lentamente, em direcções opostas, sempre à mesma velocidade. Ao rodarem, as pontas submersas riscam a água, desenhando-a e, através da sombra que se projecta, desenham também a pedra,. Um desenho duplo, feito e refeito ao infinto, ou um pas de deux com cada um a dançar para seu lado, dois bailarinos cegos, surdos, mudos, esqueletos de um mundo anterior ou posterior. O único, levíssimo, som que há é o da água.

10. Numa peça recente no Palais de Tokyo, Thidet já tinha usado madeira e água, construíra um abrigo com chuva a cair em permanência lá dentro. Uma espécie de Walden ‘Blade Runner’ ou a Vida nos Bosques. Nesse abrigo, a água afastava o visitante, como aqui também é o limite para um outro mundo. “Sempre imaginei os objectos como estando num coma, como se todos tivessem um potencial de reactivação, como se o objecto dormisse, e nós tivessemos a possibilidade de lhe dar uma nova vida”, explica o autor no folheto sobre a instalação. “Imaginei, então, um projecto em que se encontrassem estes dois estados, móvel e inerte.” Desse encontro, que levanta e torna aéreo o que jazia morto, é que nasce o desenho, repetindo-se sem nunca ser o mesmo, perturbando uma superfície, que não por acaso é água, hoje matéria política, de combate, enquanto lá fora segue 2016.

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