Para ser escritor, não precisa falar bonito

A Flupp não faz só escritores subirem o morro. Também põe a favela a escrever. Não existe outro festival literário assim. Em vez de Paraty, Babilónia. Em vez de Salman Rushdie, Raquel de Oliveira e Jessé Andarilho.

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A vida de Raquel de Oliveira deuum romance, A Número Um Filipe Marques/FLUPP
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Jessé Andarilho (à esq.) com um dos anfitriões/apresentadores da Flupp, Márcio Januário Francisco Costa/FLUPP

Lá porque se está na favela, não significa que se podem dizer palavrões. Raquel de Oliveira leu um excerto do seu livro em voz alta e deu em autocensurar-se.

– Trabalhou pra ca- ... pipi... e agora na hora do bem-bom vai cair fora?

Raquel de Oliveira pode ter sido mulher de bandido um dia mas estavam muitas escolas na plateia. Crianças e adolescentes pra... pipi. A Flupp – Festa Literária das Periferias não faz só escritores subirem o morro da favela uma vez por ano; também põe a favela a escrever. É seguro dizer que não existe outro festival literário assim no mundo. Em vez de Paraty, Morro da Babilónia. Em vez de Salman Rushdie, Raquel de Oliveira.

“Tinha aquela ideia de que o escritor está lá, pairando na nuvem. É Deus, Jesus e o escritor”, diz esta moradora da favela da Rocinha. Não mais: “Eu sou escritora. Quer dizer, eu costumo dizer que estou escritora.”

A vida de Raquel de Oliveira, 54, dava um Breaking Bad ao contrário (Breaking Good?), mas em vez disso deu um romance, lançado em Setembro na Bienal do Livro do Rio. Editado pela Casa da Palavra, do grupo editorial LeYa, em parceria com a Flupp, A Número Um narra a trajectória de uma mulher – a Bonitona – criada desde pequena entre criminosos da maior favela do Rio de Janeiro, vendida aos nove anos pela família, que teve num dos principais traficantes de droga da cidade o amor da sua vida, que virou chefe da “boca de fumo” (tráfico) depois de ele ser morto pela polícia. 

“Mulher nenhuma viveu essa história que eu vivi. Porque não foi só uma história de amor e romance, ‘que lindo, vamos namorar’, não. Eu colei no cara. Eu vivi com ele. Eu estive ali todos os momentos. Como era o trabalho dele, passou a ser o meu também. O nome dele, verdadeiro? Naldo. Está na Internet, todo o mundo conhece. Foi um momento em que o tráfico de drogas como sistema, tanto político como financeiro, ganhou visibilidade. Foi o momento do boom. E a Rocinha foi a primeira favela a impor esse sistema como um poder paralelo”, diz Raquel.

Naldo, bandido-celebridade, Clyde da Rocinha, foi morto numa operação policial em 1988. “A gente tinha a ideia de sair dali e viver vida nova, ir para a Paraíba onde ele tinha nascido e sido criado. Aquela utopia, né, de ser feliz. Aí a polícia atacou, invadiu, matou todo o mundo. Só eu sobrevivi.” Raquel reorganizou o sistema da boca de fumo dentro da Rocinha e assumiu o comando. Era uma forma de manter o amor vivo. “Nessa época a cocaína teve um boom e, claro, chegou até a mim. Só que era escondidíssima porque ele não aceitava mulher que usava drogas.”

Foi numa clínica de recuperação para toxicodependentes que se descobriu poeta. Em 2013, o terapeuta de Raquel inscreveu-a nas oficinas de escrita da Flupp, onde os participantes recebem orientação de escritores.

“O meu era o Bernardo Vilela, a quem eu chamo hoje de meu malvado preferido”, ri-se. Porque era uma guerra:

– Isso não pode!

– Eu quero!

– Não é assim!

– Eu quero!

“Ele foi me lapidando. Foi muito difícil. Eu nunca tinha passado por uma lapidação profissional. Minhas obras são meus filhinhos. É como pegar o seu filho e o deixar na escola. Putz, dói muito. Primeira aula da criança é uma tristeza. Nesses momentos, eu pensei: ‘Gente, não vou conseguir.’”

Júlio Ludemir, um dos fundadores e produtores da Flupp, que conhece as favelas cariocas como poucos brasileiros de classe média – primeiro como cliente da boca de fumo, depois como repórter e escritor e, finalmente, como organizador de eventos e morador – foi o visionário que desde o primeiro momento acreditou que Raquel de Oliveira devia escrever um romance sobre a sua experiência.

No prefácio de A Número Um, Júlio Ludemir compara-se ao editor que publicou os primeiros textos de Machado de Assis, o mulato pouco instruído que se revelou génio literário.

“É um romance baseado em factos reais. Porque eu não posso retratar um diálogo que aconteceu há 30 anos palavra por palavra”, justifica a autora. “Os nomes também são fictícios. Não é uma autobiografia porque eu não sou ninguém. Biografia de quem não é celebridade não vende.”

Escrever foi mais difícil do que viver na boca de fumo, diz. “Tem gente que fala: ‘Como assim?’ Mas ali era a minha raiz, onde eu me sentia feliz, onde me sentia segura. E aqui não, eu estava na corda bamba. Entre mim e as palavras existia uma distância muito grande.” Doeu pra... pipi. Mas agora tem até motoboy que a reconhece:

- Oi, escritora da Rocinha!

Todos querem ser Jessé Andarilho

Que a favela esteja a produzir escrita a partir do seu interior não é exactamente um fenómeno recente ou raro. Nunca houve foi tantos autores e tanta diversidade, ao ponto de alguém decretar, num dos debates da Flupp, que “já estamos vivendo o fim do boom da literatura de periferia”. Ela tem sido tão insistente que não pode ser mais ignorada, inclusive pela academia.

“Eles estão inventando uma nova estética que não cabe em categorias canónicas da teoria literária mais tradicional. Temos de abrir as mentes para essa nova estética, senão estamos a impor os nossos parâmetros, o que não acho justo”, disse a francesa Leila Lehnen, professora de literatura e cultura brasileira na Universidade do Novo México (EUA), numa das mesas da Flupp. A literatura que vem das favelas faz parte do programa de estudos do seu curso. Écio Salles, co-fundador e curador da Flupp, ficou curioso: Isso interessa a um estudante norte-americano? Leila Lehnen nem hesitou. “Isso interessa muito mais do que Dom Casmurro!” Machado de Assis, outra vez.

A literatura de periferia não pede licença nem desculpas por existir. “O escritor da periferia quer ser reconhecido profissionalmente. Não quero ter o rótulo de momentânea”, declarou Raquel de Oliveira aos dois especialistas académicos que estavam no palco. Não soou como um pedido, mas como uma exigência.

Um dia antes, Jessé Andarilho foi arrancado da sua cadeira na plateia da Flupp e puseram-lhe um microfone nas mãos. Filho de um vendedor de cuscus e de uma vendedora de sonhos, ele estava ali para inspirar outros jovens iguais a ele, de boné e mochila. Um modelo de aspiração.

“Para ser escritor não precisa falar bonito, não precisa andar de terno [fato] e gravata”, disse. Mas isso era já a moral da história.

Jessé é de Antares, favela na zona oeste do Rio, controlada pelo Comando Vermelho, onde em 2011 morreu um operador de câmara da TV Bandeirantes, abatido a tiro enquanto cobria uma operação policial. Jessé faltava à escola, reprovou o 7.º ano cinco vezes, foi, nas suas próprias palavras, um péssimo aluno. Depois de completar a tropa, abriu um lava-jato (lavagem de automóveis) na favela, uma utopia porque na favela quase não há carro, mas o que interessa é que um dia uma garota passou com um livro na mão. A capa chamou-lhe a atenção – o título, No Coração do Comando, estava pintado numa parede, como as siglas das facções criminosas do Rio. “E a garota era bonita também.” A garota emprestou-lhe o livro, uma espécie de Romeu e Julieta no presídio carioca. “Ia ter uma festa lá em casa nesse dia, minha mãe ‘tava organizando. Tomei um banho, entrei no quarto, peguei o livro e comecei a ler. A festa começou, a festa acabou e eu continuei lendo o livro. Li o livro de uma vez só”, conta ao PÚBLICO.

Jessé foi lendo mais, outros livros sobre a favela, sobre a boca de fumo, sobre o mundo bandido. Um dia pensou: “Eu tenho histórias melhores para contar.” Começou a escrever no telemóvel, nas viagens entre casa e o trabalho, duas horas de comboio para cada lado. Deram-lhe outros livros para ler, clássicos como O Triunfo dos Porcos de George Orwell, ou O Estrangeiro de Camus. Em 2012, ano inaugural da Flupp, participou nas oficinas de formação de novos autores. “Quando cheguei lá, descobri que o cara que organizava a Flupp era o autor do primeiro livro [No Coração do Comando], Júlio Ludemir.”

Com o romance pronto debaixo do braço foi bater à porta das editoras. “O pessoal dizia que eu não tinha cara de escritor. Faziam um pré-julgamento e não liam o que eu tinha para mostrar.” Pensou vender a moto e a casa para financiar a publicação. O manuscrito foi enviado por um intermediário a Roberto Feith, diretor-geral da Objetiva. “O cara leu de uma vez só. Ele disse que uma vez tinha recusado publicar um livro e que depois se arrependeu. Esse livro era o Harry Potter. Ele disse que tinha medo de o meu livro ser o próximo Harry Potter na vida dele.”

Fiel foi lançado em Julho de 2014. Um ano depois, Jessé Andarilho (Andarilho é pseudónimo) estava entre os autores convidados da Flip, em Paraty. Em Setembro, foi a Nova Iorque falar do livro, em Março vai até à Europa – França, Bolonha, Portugal. “Hoje vivo de palestras e das vendas do livro.” Esse era o recado que ele tinha para a plateia da Flupp: “Quando eu não gostava de ler, eu lavava carro. Agora sou conhecido, estou ganhando dinheiro. Ler faz bem, ‘tá ligado? Engordei 13 quilos. Comida boa...”

Se o Jessé, que fazia bagunça, que pichava muro, hoje é escritor, qualquer pessoa pode fazer o que quiser. É só acreditar.

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