Pai e filho

Toumani implica o filho numa linhagem de 72 gerações da sua família dedicadas à kora.

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A carta está jogada. Sidiki que saiba dar continuidade ao génio de Toumani

Lançado originalmente em 1970, Cordes Anciennes tornou-se um objecto de culto entre os apreciadores da dita world music, da música maliana e da kora em particular. Num diálogo que o mundo num antes ouvira entre duas koras, habitualmente descritas como harpas para o vocabulário musical do Mali, Sidiki Diabaté e Djelimadi Sissoko pareciam extrair dos seus instrumentos um lirismo possivelmente só identificado até então em pianistas de jazz da estirpe de Bill Evans. Música em remoinhos de transe contemplativo, melodias que se desafiavam como que trepando por cima umas das outras, uma tradição de 700 anos dos griots mandé cuspida com espantosa beleza para o rosto de milhares de desconhecidos.

O álbum construiu uma aura de tal forma mítica que a kora, com o advento da world music, começou a viajar sem nunca repetir tal encontro a duas vozes, como se qualquer tentativa de imitar o feito anterior partisse, desde logo, de um ponto de comparação que a reduziria a um esforço patético. Até que os filhos dos intérpretes originais, Toumani Diabaté e Ballaké Sissoko, arriscaram repetir a proeza com New Ancient Strings, em 1999, e aquilo que lograram atingir foi, afinal, mais sublime ainda para ouvidos que não tenham sido educados na tradição mandé, sabendo integrar recursos estranhos a esse património local. Toumani, fundador de uma Symmetric Orchestra em que a simetria era dada por doses iguais de tradição e modernidade, passaria pouco depois a disseminar o som da kora, colocando-a em cenários inesperados com o jazz de Roswell Rudd, o blues de Taj Mahal, a pop de Björk ou os encontros malianos de Mali Music (sob a batuta de Damon Albarn) e com o génio de Ali Farka Touré.

Estas duas histórias levantam-se novamente a propósito de Toumani & Sidiki. Voltando ao formato de duas koras, Toumani intima agora o seu filho mais velho, baptizado em homenagem ao avô. Sem querer, desta vez, reanimar o estatuto histórico de Cordes Anciennes, Toumani implica claramente o filho numa linhagem de 72 gerações da sua família dedicadas ao instrumento. Não assumindo um papel tão preponderante quanto Toumani, Sidiki traz uma linguagem menos dada ao lirismo, mais rítmica e vigorosa – o que não espanta, uma vez que a sua fama local se deve sobretudo ao duo que mantém com o rapper Iba One. De Hamadoun Touré aBansang o que fica evidente é que o fulgor melódico e a capacidade de reinvenção do instrumento, lentamente incorporando linguagens importadas que não comprometem a transmissão ancestral, ampliam cada vez mais o encanto da kora em vez de contribuírem para a sua saturação.

A carta está jogada. Sidiki que saiba dar continuidade ao génio de Toumani.

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