Os sete dias do condor

Óscar do melhor documentário, inscreve-se na linhagem do thriller político mas funciona como um retrato de um homem que embate de frente com o mundo real.

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Citizenfour era o pseudónimo electrónico que Edward Snowden usava na sua correspondência com a documentarista americana Laura Poitras; é agora o nome do filme com que ela venceu há poucas semanas o Óscar de melhor documentário.

E esse nome é central, porque explica como, para Poitras, Citizenfour é uma oportunidade de desviar o olhar da revelação que Snowden fez dos programas de vigilância electrónica das agências de informações americanas para o homem e para os seus motivos. Citizenfour não é um denunciante anónimo; é uma pessoa de carne e osso, Ed Snowden, 29 anos, que se esconde num hotel de Hong Kong poucos dias antes do interminável acervo de documentos a que o seu estatuto de consultor informático para a NSA lhe dava acesso começar a ser divulgado.

Citizenfour

não deixa por isso de reivindicar uma dimensão activista, de querer discutir as questões sobre o poder do estado que as revelações de Snowden trouxeram para o debate público. Poitras sofreu “na pele” as intimidações do estado americano devido aos documentários “incómodos” que realizou anteriormente sobre as consequências do 11 de Setembro

(My Country My Country

sobre o Iraque e

The Oath

sobre o Iémen) e terá sido em parte por isso que Snowden “escolheu” a cineasta como interlocutora privilegiada. Mas, ao registar e contextualizar os sete dias em que Poitras, Snowden e os jornalistas Glenn Greenwald e Ewen MacAskill estiveram em Hong Kong e, confrontados com a enormidade das revelações do consultor, gizaram o plano da sua revelação pública, a cineasta está também a desenhar um retrato do homem. E Poitras resiste a filmar Snowden como mero herói liberal ou como lutador pela liberdade; em vez disso, a sua câmara filma-o, incrédula, com a surpresa de que alguém assim exista realmente, mas também com o receio de um espectador que vê alguém enfiar-se na boca do lobo. O Snowden que aqui vemos é um vizinho do lado ou melhor amigo que se fartou de ser peça da engrenagem, alguém que pensou e racionalizou o que está a fazer mas que, ainda assim, não está preparado para o que vai acontecer a seguir.

É isso que é fascinante e sedutor no filme: mais do que reiterar a omnisciência do colete de forças electrónico que nos vigia diariamente e perceber que daqui para a frente vai ser preciso lutar pelo direito à privacidade, Citizenfour dá a essa abstracção o corpo de um idealista que se vê de repente confrontado com as consequências e as responsabilidades do seu idealismo. Há em Citizenfour um “antes” e um “depois” de Edward Snowden revelar a sua identidade – e é no momento em que o próprio Snowden se apercebe disso que o filme de Laura Poitras deixa de ser um simples documentário activista para se tornar num retrato pungente da relação equívoca entre o homem e a política, sem desencantos nem ilusões mas com uma espécie de resignação. Ao fazê-lo, Citizenfour coloca-se na linhagem do thriller político em que Hollywood se especializou na década de 1970 – títulos como A Última Testemunha ou Os Homens do Presidente de Alan J. Pakula, ou Os Três Dias do Condor de Sydney Pollack. E é impossível não ver em Edward Snowden uma espécie de “equivalente” da personagem de Robert Redford neste último, o analista que se tornou incómodo, o espião improvável que não percebeu exactamente no que se estava a meter.

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